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04 janeiro 2015

Anpu e Bata



INTRODUÇÃO DA HISTÓRIA DE ANPU E BATA1 por Idries Shah


O conto de Anpu e Bata, encontrado em um antigo papiro egípcio, tem mais de três mil anos e é considerada a mais antiga história que chegou até nós na forma escrita. Talvez, mesmo naquele tempo, ela já pertencesse a uma tradição antiga. Uma das coisas mais interessantes nessa história é que elementos encontrados em contos de todo o mundo estão contidos nela. A primeira parte tem um paralelo com a história bíblica de José e a esposa de Potifar. O núcleo da história – símbolo-vida indicando morte e a ‘alma-separável’ – aparece em mais de oitocentas versões somente na Europa, e é improvável que os contadores saibam que são parte de uma linha de transmissão que começou na Décima Nona Dinastia do Egito Faraônico.

A história algumas vezes se confunde em parte ou em sua totalidade com o mito de Perseu e Andrômeda, associada às proezas de um matador de dragões, a qual é encontrada em quase todos os países do mundo.
O antigo papiro corroído pelo tempo, hoje no Museu Britânico, contém uma mensagem do escriba original, uma ameaça a quem possa ser descomedido com ele, similar aquelas encontradas em manuscritos Orientais mesmo nos dias atuais:

“Excelentemente terminado em paz para o Ka do escriba da Tesouraria de Kagabu, da Tesouraria do Faraó. E para o Escriba Hora e o Escriba Meramapt. Escrito pelo Escriba Anena, proprietário desse manuscrito. Que Tahui possa castigar aquele que difamar esse manuscrito!”

Era costume dos reis do Oriente, quando satisfeitos com uma história que lhe fora contada, ordenar que fosse escrita e guardada junto ao tesouro.


1 História traduzida do Livro “WORLD TALES – The extraordinary coincidence of stories told in all time, in all places” Collected by Idries Shah.
2 Enviada por Elisete Ternes Pereira


 Anpu e Bata



Era uma vez dois irmãos que viviam no Egito, eles amavam muito um ao outro. O irmão mais velho tinha uma jovem e bela esposa e um bom par de bois para arar os campos. Seu nome era Anpu e o nome do irmão mais novo era Bata. Esse jovem tudo fazia por seu irmão mais velho, seguia-o e aos bois para o campo, esperava por ele como um servo, colhia o milho, cuidava dos animais. Ele trabalhava para o irmão dia e noite, pois a seus olhos, não havia outro como ele em toda a terra do Egito.

Um dia, quando o tempo da semeadura começava, o irmão mais velho disse a Bata, “Traga as sementes para o campo amanhã bem cedo, pois temos que começar a plantar; as cheias do Nilo já recuaram da terra e o dia é propício.” Anpu já havia partido para o campo e Bata devia levar as sementes. Então, Bata foi até a porta da casa de seu irmão e disse a sua bela e jovem cunhada,
“Alcance-me o milho do barril, pois meu irmão e eu precisarmos dele hoje.” A mulher respondeu, “Entre e pegue-o você mesmo, pois estou ocupada fazendo meu cabelo e não posso largar os grampos e fitas para pegar o milho.” Então ele entrou e pegou tanto milho quanto podia carregar, pois queria plantar aproveitando bem o dia, que era propício.

Vendo Bata carregando tal carga, a mulher de seu irmão lhe disse, “Você é forte e bonito, realmente. Eu não tinha notado antes quão atraente você é. Fique comigo um pouco antes de ir para os campos, pois vocês passarão todo o dia fora e eu me sentirei sozinha. Dê-me algo para recordar quando eu estiver só.”

Bata recuou ao ouvir as palavras da mulher e sua face escureceu de raiva. Ele disse, “Você é como uma mãe para mim; você não é a esposa de meu respeitável irmão? Vou esquecer o que você me disse. Esqueça isso você também.” Ele partiu para os campos tentando apagar da mente as sugestões dela, pois ela era a mulher de seu irmão, a qual, embora bela, parecia-lhe agora maldosa aos seus olhos.

Trabalharam nos campos o dia inteiro e retornaram à casa ao entardecer. Esperavam encontrar a comida pronta, como de costume, mas na casa não havia fogo, ou luz, nem cheiro de comida. Bata foi para o estábulo cuidar dos animais e Anpu foi para casa ver o que estava errado com sua esposa. Ela estava na cama, encolhida sob a coberta chorando como se sentisse dor.

“O que há com você?” ele perguntou, “Alguém esteve aqui na minha ausência para perturbar você dessa forma?”

“O único que veio aqui em sua ausência foi seu desgraçado irmão!” ela gritou, “Pergunte a ele o que há de errado comigo!”

“Mas, o que você está dizendo? Ele pôs as mãos em você?” gritou o marido enraivecido.

“Sim,” disse ela, “Eu estava fazendo meu cabelo quando ele entrou para buscar as sementes e disse ‘Fique um pouco comigo antes que eu vá para o campo e meu irmão jamais saberá’ e ele me violentou. Oh, meu marido, não posso olhar para você tamanha a vergonha que sinto!” Então, Anpu afiou sua faca e se colocou em frente ao estábulo, pronto para matar seu irmão tão logo ele viesse juntar-se a eles para jantar.

Totalmente desinformado, o irmão mais novo continuava a fazer suas tarefasno estábulo, quando sua vaca favorita lhe falou:
“Cuidado, Bata, seu irmão afiou a faca e te espera atrás da porta para matá-lo. Corra, não volte à casa ou você morrerá.”
O jovem moço espiou para fora do estábulo e viu seu irmão estranhamente parado, com uma faca na mão. Temendo não ser capaz de explicar a verdadeira situação a seu irmão, fez um buraco na parede de barro do celeiro e fugiu tão rápido quanto seus pés o podiam carregar. Mas o irmão mais velho o ouviu correr e foi atrás dele. A luz do assassino estava em seus olhos.

Então, tomado pelo medo, Bata gritou aos céus: “Ó Grande Ra Harakiti, Senhor Poderoso, Sois aquele que divide o Mal do Bem! Salve me!” e Ra atendeu à sua prece.

Um rio poderoso surgiu entre os irmãos, um rio que Anpu não poderia atravessar mesmo que tivesse um barco, pois estava coalhado de crocodilos. O irmão mais velho estava furioso por não poder alcançar Bata e matá-lo, e o amaldiçoou da outra margem.

Mas Bata lhe falou em alta voz dizendo: “Ó, meu irmão, não me julgues mal. Não posso provar que não cometi erro algum, mas minha vaca me alertou e fugi de você com medo. Por que você decidiu matar-me antes de perguntar se fiz a maldade que você julga que fiz?”

Seu irmão respondeu: “Diga-me, então, você mesmo o que de fato ocorreu?” Bata respondeu, “Fui ao barril pegar as sementes eu mesmo, pois sua esposa estava fazendo o cabelo e disse-me que não desejava deixar a toalete para atender-me. Então, depois de pegar as sementes eu mesmo, ela disse que eu parecia forte e bonito, e tentou-me a ficar um pouco com ela dizendo que você não ficaria sabendo. Vê como a verdade mudou.”

“Você jura por Ra Harakiti que o que contou é verdade?” Gritou o irmão mais velho. “Por Ra Harakiti eu juro que é verdade,” disse o irmão mais novo, e tirou sua faca, e cortou um pedaço de sua carne, e atirou-o na água, e os crocodilos o comeram. Então o irmão mais velho satisfez-se e chorou por Bata e amaldiçoou sua esposa. Ele sabia que não poderia alcançar seu irmão por causa dos crocodilos, quedou-se lá e guardou sua faca.

“Agora sabemos que você fez algo mal tentando matar-me; você poderia fazer algo bom por mim?” disse Bata. Anpu disse que faria e então seu irmão lhe disse, “Estou partindo para o vale da acácia. Volte para sua casa e cuide de seu gado. O que você pode fazer por mim é isso; minha alma será removida e colocada na flor da acácia. Quando a acácia for cortada, e será, ponha a flor num copo de água fria, pois minha alma estará nela. Quando alguém lhe der um copo de cerveja na mão e ela estiver se agitando no vidro, então não se demore, vá em busca da flor, mesmo que tiver que buscá-la por sete anos, e coloque-a na água. Adeus.”

O jovem, então, parou de falar essas coisas estranhas e partiu para o vale da acácia. Seu irmão voltou-se e caminhou de volta à casa, ele estava com raiva de sua esposa e matou-a no calor de sua ira. Então, jogou fora sua faca e cuidou dos campos e do gado ele mesmo, sofrendo por seu irmão.

Muito tempo depois, o irmão mais novo estava vivendo no vale da acácia. Ele havia removido sua alma que agora vivia na flor mais alta da árvore de acácia. Ele havia construído para si próprio uma pequena casa onde vivia e que estava repleta de boas coisas.

Um dia, caminhando pelo vale, ele encontrou os Nove Deuses, que estavam indo inspecionar toda a terra do Egito. Os deuses conversavam entre si quando surgiu Bata no caminho e eles lhe falaram, “Ó Bata, Touro dos Nove Deuses, por que você caminha sozinho? Seu irmão matou a esposa e tudo está bem entre vocês. A transgressão dele está perdoada.”

Então, enquanto Bata se ajoelhava diante deles, Ra Harakhiti disse para Khnumu, “Faça uma mulher para Bata para que ele não viva só para sempre, uma companheira para sua solidão.” Khnumu fez uma esposa para ele. Ela era mais bela do que qualquer outra mulher já havia sido antes. Os sete Hathors vieram vê-la quando foi criada e eles exclamaram num acorde: “Ela morrerá uma morte chocante, embora a essência de todos os deuses esteja nela!”

Bata caçava o dia todo, voltava ao entardecer e depositava tudo que havia conseguido aos pés de sua esposa, pois ele a amava muito. Um dia ele lhe disse “Ouça, preciso alertá-la, jamais chegue muito perto do mar, pois se ele quiser capturar você e levá-la para longe eu não poderei salvá-la, pois minha alma está na flor no alto da acácia e não tenho outro poder além daquele na flor.”

Quando ela ouviu seu segredo sorriu e pensou muito sobre o assunto. No dia seguinte ela foi passear na beira do mar e o mar a viu, e começou a lançar suas altas ondas na direção dela. Ela correu assustada com a paixão do mar, afastando-se dele. Ela entrou em sua casa e o mar chamou a acácia dizendo: “Quero possuir aquela mulher, queria poder levá-la!” Então a acácia levou uma mecha do cabelo que a mulher havia cortado quando estava sentada debaixo da árvore e jogou-o na água. O mar levou a mecha para onde estavam os lavadeiros do Faraó.

Um dos lavadeiros, que estava em pé sobre a areia, pegou a mecha de cabelo. Ela tinha um perfume tão inebriante que ele quase perdeu os sentidos. Ele colocou a mecha entre as roupas que estavam sendo levadas para o Faraó e quando o Faraó sentiu aquele perfume sentiu-se extasiado. “De onde veio essa fragrância rara e maravilhosa?” exclamou o Faraó. “Tragam os sábios para que eles também possam senti-la e me contar.”

Vieram os homens sábios, com seus sinais e portentos, e disseram ao Faraó, “A fragrância é proveniente da mecha de cabelo da filha de Ra Harakhiti, a essência de todos os deuses se encontra nela. Envie mensageiros para o litoral e no vale da acácia ela será encontrada.”

Então o Faraó enviou muitos homens para o vale da acácia e eles tentaram capturar a esposa de Bata, mas ele matou a todos. Nenhum dos homens retornou ao Faraó e este, então, enviou mais homens, desta vez uma cavalaria de fortes soldados, para capturá-la.

Bata teve que deixá-la ir, mas eles não o mataram. Ele ficou só sob a acácia sentindo-se muito angustiado. De alguma forma, ele tentou enviar uma mensagem mental a seu irmão, para lembrá-lo do que havia lhe dito da outra margem do rio de crocodilos na última vez que se viram.

A bela mulher agradou o Faraó imensamente e ele lhe deu tudo o que estava em seu alcance. “Faraó,” disse ela, depois de ter sido presenteada com ouro, joias e os mais raros anéis, “Mande cortar a acácia, pois a alma de meu marido se encontra na sua flor mais alta e eu gostaria que ele estivesse morto.” Então os homens foram e cortaram a árvore do vale, tal que sua flor mais alta, onde se encontrava a alma de Bata, caiu sobre o solo e ele também, caiu morto.

Naquele exato momento alguém entregou a Anpu, o irmão mais velho, um copo de cerveja e o líquido começou a agitar-se quando ele estava prestes a bebê-lo. Ele, então, lembrou-se do que seu irmão lhe havia dito há tanto tempo. Ele pegou seu cajado e suas sandálias, suas roupas de viagem e partiu. Viajou todo o dia e toda a noite e chegou ao vale da acácia. Viu então que a árvore havia
sido cortada e viu o corpo morto de seu irmão. Chorou amargamente e buscou em todos os lugares a flor que continha a alma de seu irmão, mas não consegui encontrá-la. Deitou-se sob a árvore para dormir e disse para si mesmo – “Amanhã, e amanhã, e amanhã eu a buscarei, pois usarei todos os dias de minha vida, se necessário, para encontrar a flor.”

No dia seguinte ele não a encontrou, mas descobriu, num sulco do solo, uma semente. Ele mergulhou a semente num copo d’água e ela brotou. Logo tornou-se a flor que continha a alma de seu irmão. Poucos minutos depois, o corpo de Bata estremeceu sob o pano que lhe cobria e em seguida ele estava em pé, bem e forte diante de Anpu. Eles se abraçaram cheios de alegria, sentaram-se e conversaram juntos por muitas horas.

Então Bata disse a seu irmão, “Pelo favor dos deuses, estou para me tornar um grande touro e você deve montar-me. Quando o sol tiver se levantado três vezes deverei estar no lugar onde minha esposa faz o Faraó de tolo. E, quando eu estiver diante do Faraó, você será levado a ele e ele lhe dará ouro e prata, e outras boas coisas em retorno. Serei considerado por todos uma grande maravilha e você retornará à sua antiga vila como um homem rico.” Em seguida, diante dos olhos de Anpu, ele se transformou em um grande touro, e dentro de três dias eles estavam na presença do Faraó.

O Faraó jamais havia visto tão bela criatura em todos os seus domínios do Alto e Baixo Nilo e então, deu muitos presentes ao irmão mais velho e levou Bata em sua forma de touro para os estábulos reais, onde devia ser tratado em grande estilo. O touro gigante era tão manso que frequentemente era enfeitado com guirlandas de flores pelas damas reais. Um dia, quando sua esposa, agora uma Princesa por ordem do Faraó, aproximou-se dele, o touro lhe falou com sua voz humana, “Estou vivo; os deuses em suas sabedorias, fizeram-me habitar esse corpo maravilhoso de touro.”

Ela estava muito atemorizada e ponderou sobre como poderia livrar-se do marido uma vez mais. Então foi ao Faraó e disse, “Meu senhor, jamais serei feliz enquanto não tiver como remédio o fígado daquela criatura, a qual, estou certa, não serve para mais nada além de ser comida!” Imediatamente o Faraó ordenou que o animal fosse abatido e disse, “Que o fígado seja dado à Princesa, para que ela logo se recupere e fique bem novamente."

Planejou-se uma enorme festa e o touro foi sacrificado aos deuses. Quando estava sendo abatido o touro sacudiu-se e projetou duas gotas de sangue dos ferimentos em seus ombros nas paredes do palácio real. O sangue escorreu em cada lado da porta gigantesca e nos lugares onde o sangue molhou o chão nasceram duas árvores de Persea. Elas cresceram e cresceram, cada dia mais altas e eram ambas perfeitas em todos os sentidos.

Um cortesão foi falar ao Faraó, “Duas árvores gigantes estão crescendo, uma em cada lado da porta grande do palácio; são sinais propícios, ó Faraó!” E houve muito júbilo pelo surgimento dessas árvores. Muitas pessoas levavam oferendas a elas, por terem tido um crescimento miraculoso a partir do sangue do touro. As damas da corte colocavam guirlandas de flores em torno das árvores e oravam para elas.

Quando sua esposa veio, Bata falou-lhe em sua própria voz, a qual ela tão bem conhecia, “Mulher traiçoeira, eu sou Bata, a quem você traiu três vezes. Primeiro foi ao Faraó; depois fez com que cortassem minha árvore-alma e depois pediu pela morte do boi. Agora estou na força dessas árvores, jamais morrerei!”

Então a princesa foi ver o Faraó e lhe disse “Já que você me ama, poderia me fazer um pequeno favor? Não gosto da visão grotesca daquelas duas árvores de Persea, uma em cada lado da grande porta do palácio. Você poderia, por favor, ordenar sejam cortadas, pois elas crescem mais feias a cada dia e um dia irão derrubar o palácio; disso estou certa!”

O Faraó, embriagado de amor por ela, consentiu, e no dia seguinte lenhadores puseram-se a cortar as belas árvores de Persea com muito vigor necessário. A Princesa assistia em pé de não muito longe a essa atividade, com júbilo no coração, quando uma pequena farpa voou para sua boca. Ela ficou tão
espantada que a engoliu. Naquele momento as árvores foram ao chão, no lado de fora dos portões do Palácio.

Depois de nove meses a Princesa deu à luz a um filho e todos no país se regozijaram, pois o Faraó pensava que o filho era seu. Com o passar dos meses o amor do Faraó pelo filho aumentava e ele o criou para que se tornasse o filho real de Kush, herdeiro de todas as terras do Alto e Baixo Nilo. Não muito depois o Faraó morreu. Então, o Príncipe, herdeiro das terras, disse: “Que venham a mim todos os nobres, pois quero contar-lhes tudo que me aconteceu.”

Eles vieram e ele contou-lhes tudo. Seu irmão mais velho foi trazido da vila e foi nomeado ministro da corte. Então trouxeram sua esposa, ela foi julgada e recebeu sua punição. Ele foi rei do Egito por trinta anos e tanto encantou seu povo que seu irmão foi levado ao trono depois de sua morte.

27 abril 2014

A Sorte de Catarina

Há muito tempo atrás, viveu um mercador muito rico e generoso, que possuía um palácio deslumbrante. O orgulho de sua vida era sua filha, uma linda criatura chamada Catarina. Catarina era alta e magra, com cabelos negros e olhos grandes e brilhantes. Suas mãos e seus pés eram pequenos e delicados, sua pele tão macia como as pétalas de uma rosa. No palácio havia tronos de ouro, turquesas enfeitavam cadeiras de prata, rubis as molduras dos quadros e diamantes as fontes de água. Tudo ao redor de Catarina era luxo e beleza. Pavões passeavam pelos jardins, flores desabrochavam em vasos pendurados nas árvores, em suma, o melhor que o dinheiro podia comprar. Um dia, quando Catarina estava andando pelo jardim, vestida numa longa túnica de seda bordada em finíssimas pérolas, com um capuz do qual pendiam outras tantas fileiras de pérolas, uma dama de aparência elegante surgiu à sua frente. Havia algo de notável nessa mulher, seus olhos eram muito penetrantes e escuros, suas roupas pareciam não ser nada além de cortinas luminosas. - Catarina, minha querida criança, disse a dama, o que você prefere: gostaria de gozar sua vida na sua juventude ou gostaria de gozá-la na sua velhice? Você tem somente essas duas escolhas. Catarina pensou por um momento e então falou: - Se eu tiver o meu prazer agora, sofrerei por isto nos meus últimos anos? E a dama alta respondeu: Sim. - Mas como é que você sabe ? perguntou Catarina, que continuava a ponderar sobre a questão. - Porque eu sou a sua Sorte, respondeu a aparição. - Oh, então eu terei a minha boa fortuna na minha velhice, disse Catarina. - Muito bem, que assim seja, disse a sua Sorte, e desapareceu. Catarina nada pensou a respeito desse encontro e retornou até sua casa para trocar suas roupas por outras ainda mais finas. Mas alguns dias depois algumas coisas terríveis começaram a acontecer. Uma grande tempestade se abateu sobre o mar. O pai de Catarina estava esperando seus navios voltarem de um país estrangeiro, carregados de ricas mercadorias, mas todos eles foram mandados para o fundo do oceano pela tormenta. Seus armazéns foram queimados por um misterioso fogo; então, quando ele decidiu preparar novos navios, nada havia para colocar dentro deles. Ele alugou seus barcos a um duque, que queria acompanhar um príncipe que seguia para a guerra, mas todas as naus foram afundadas num encontro com piratas. Os homens do duque foram mortos e o próprio duque ficou sem um tostão. Ladrões arrombaram a casa e roubaram todas as joias de Catarina; suas roupas foram então vendidas para que eles tivessem o que comer por mais algum tempo. Por fim, infeliz e doente, o pai de Catarina morreu, deixando-a só no mundo. Sem dinheiro e com roupas muito simples, Catarina decidiu abandonar essa cidade que havia lhe trazido tanta má sorte e encontrar, se possível, algum trabalho num outro lugar. Então ela disse adeus à cidade onde nascera e começou sua longa e penosa marcha. Finalmente alcançou uma aristocrática cidade longe de seu próprio país, e parou um instante no meio da rua, imaginando aonde ir. Tinha um pouco de dinheiro, que uma antiga ama havia lhe dado, e estava pensando aonde poderia comprar um pouco de pão. Uma senhora de boa posição, olhando para fora de sua janela, viu-a e chamou-a: - Quem é você, minha querida, e de onde vêm? Você não é dessa parte do mundo. - Senhora; estou sozinha no mundo, pois meu pai, que um dia foi um rico mercador, morreu. Procuro um lugar onde possa comprar um pouco de pão. - Venha para minha casa, eu preciso de uma criada e você desempenhará essa função muito bem, disse a nobre senhora; e Catarina entrou agradecida na enorme construção. A senhora afeiçoou-se muito a ela, e lhe confiava todos os seus bens. Um dia a dona da casa lhe disse: - Preciso sair por um momento; feche bem a porta e não deixe ninguém entrar ou sair até que eu volte. Então Catarina fechou a porta e sentou-se perto do fogo. Mas a nobre senhora havia saído, a porta se abriu e sua Sorte entrou. - Olhe, aí está você, Catarina! Gritou sua Sorte asperamente. - Arranjou um bom lugar para ficar, não é mesmo? Bem, você não pode escapar de mim dessa maneira, sabe... E começou a atirar no chão todos os objetos de valor da dona da casa, quebrando vidros e porcelanas, rasgando em pedaços linhos caríssimos. - Oh, não, não, não!!! Gritou Catarina. - Isso vai me causar problemas terríveis! A senhora confia em mim!! - Ela confia? Zombou sua sorte. - Bem, então explique isso quando ela voltar... E transformou a longas cortinas de seda em farrapos. Catarina colocou as mãos no rosto e fugiu, correndo da casa, sem nunca olhar para trás, no caso de sua sorte estar lhe seguindo. Mal ela acabara de sair, sua Sorte colocou tudo novamente como estava antes e desapareceu. Quando a senhora retornou, a casa estava perfeitamente arrumada, mas Catarina tinha ido embora. A senhora chamou e chamou, mas claro que a pobre garota não ouviu, pois estava já muito longe. A dama examinou tudo, pensando que talvez Catarina a tivesse roubado, mas nada estava lhe faltando. Ela não podia entender o que acontecera, pois a garota parecia ser de toda confiança. Ora, a pobre Catarina correu até alcançar outra cidade e, ao procurar um lugar onde pudesse comprar um pouco de pão, outra senhora que estava parada na janela a notou. A dama abriu a janela e lhe falou: - De onde você é e o que faz neste lugar, já que é obvio que está perdida? - Sou uma pobre garota de longe e procuro algo para comer, pois tenho muita fome, respondeu Catarina. - Bem, venha para minha casa, disse a dama. - Eu vou alimentá-la, vesti-la, e arranjar-lhe um lugar entre a minha criadagem. Então, Catarina entrou. Mas a mesma coisa aconteceu, como antes. Assim que ela se estabeleceu na casa e todos os valores lhe foram confiados, sua Sorte apareceu e criou o caos em apenas alguns segundos. - Você pensa que há algum lugar nesse mundo onde eu não seja capaz de encontrá-la ? gritou sua sorte asperamente, derrubando frascos de incenso de valor incalculável que se espatifaram no chão. Catarina colocou as mãos no rosto e correu. E assim foi durante sete anos. Cada vez que Catarina era acolhida por alguma simpática senhora, o aparecimento de sua Sorte fazia com que ela tivesse que partir em viagem, infinitamente, parecia-lhe. Mas ela nunca conseguia escapar por muito tempo. Porém, - e isto Catarina não sabia – sua Sorte sempre restaurava tudo à antiga forma, no mesmo minuto em que Catarina desaparecia. Bem, sete anos se passaram e quando Catarina estava trabalhando para uma senhora nobre, muito bondosa de coração, parecia que sua Sorte quase havia se esquecido dela. Dia após dia Catarina cuidava da casa, e tudo dava certo para ela. No entanto, a tensão era muito grande, pois a cada hora ela esperava que a porta se abrisse e sua Sorte aparecesse. Todo dia ela devia ir à montanha para sua patroa, com uma cesta repleta dos mais finos pães e queijos. Uma figura alta e digna pegava a cesta de suas mãos graciosamente a cada dia e, após cumprimentá-la, desaparecia na caverna. Um dia sua senhora patroa lhe disse: - Sempre procuro ganhar as boas graças de minha Sorte dessa maneira. Se eu não lhe enviar pão fresco e queijo, tremo só em pensar o que ela poderia causar-me. Nesse momento, Catarina começou a chorar, incapaz de esconder sua dor, pois ela havia sofrido muito nesses últimos sete anos, e não conseguia continuar escondendo sua tristeza. - Minha querida criança, o que está acontecendo com você? Conte-me logo! Gritou a nobre senhora, colocando sua mão no ombro de Catarina. Então Catarina contou-lhe a história da crueldade de sua sorte, e completou: - Penso que não posso continuar nessa angústia, esperando que ela apareça a qualquer momento e transforme tudo em pedaços, como já fez tantas vezes. Na verdade, quero ir embora daqui logo, pois dessa forma não trarei a destruição de minha sorte para esta casa. - Agora, deixe-me pensar num plano, disse a nobre mulher, balançando a cabeça. - Sim, já sei! Quando você for à montanha levar o pão para minha Sorte, conte-lhe sua história e apele para que ela tenha uma palavrinha com a sua Sorte, para que deixe de atormentá-la dessa maneira. Tenho certeza de que minha Sorte, que é bondosa, ajudará. Assim, no dia seguinte, quando Catarina foi até a montanha levar a cesta para a Sorte de sua senhora, pediu para que ela intercedesse junto à sua própria Sorte. - Bem, sua Sorte está dormindo debaixo de sete cobertores nesse momento, disse a sorte de sua patroa. Mas quando você vier amanhã, eu a levarei junto comigo até ela, pois deve estar acordada. Catarina foi embora cheia de esperanças e dormiu esta noite quase que completamente em paz. Ao levar o pão à montanha na manha seguinte, a Sorte de sua senhora levou-a até a sua própria Sorte, que estava deitada numa grande cama, enfiada até os olhos debaixo de sete cobertores de pena. - Bem, irmã, aqui está Catarina, disse a Sorte de sua nobre senhora. - Pare de atormentá-la desse jeito, deixe-a um pouco em paz agora, eu lhe peço. Sua sorte disse apenas: - Aqui está uma meada de seda, ela lhe será muito útil, cuide dela com carinho. Agora me deixe descansar. E desapareceu debaixo dos cobertores. Intrigada com isso, Catarina voltou para casa. Sua patroa estava ansiosa para saber o que acontecera, mas a história que Catarina lhe contou não parecia ter nem pé nem cabeça. - Essa seda não vale muita coisa, mas é melhor você guardá-la. Ela lhe deve ser útil, como sua Sorte disse, falou a nobre mulher. O rei daquele país, que era jovem e extremamente bonito, estava para se casar. O alfaiate real estava muito constrangido, pois descobriu que, em todo o reino, não se encontrava seda da cor apropriada em quantidade suficiente para costurar o traje de núpcias do rei. - Lancem uma proclamação, disse o Rei. Preciso que minha roupa fique pronta a tempo. Enviem-na aos quatro países que fazem fronteira com meu reino e aos quatro cantos dos meus domínios! Qualquer pessoa que tiver seda dessa cor deve trazê-la até a corte e eu a recompensarei generosamente. A nobre senhora ouviu a proclamação e veio contar para Catarina: - Catarina, minha criança, coloque este vestido e leve esta meada de seda até a corte. É exatamente a cor que o alfaiate está procurando, ela gritou excitada. - Tenho certeza que você será generosamente recompensada. Quando Catarina apareceu na corte e se postou diante do trono, o jovem rei achou-a tão bela que não conseguiu desgrudar os seus olhos daquele rosto. - Sua majestade, disse Catarina, será que esta seda é adequada para seu traje de núpcias? - Você será paga com puro ouro por ela, disse o Rei. Tragam a balança e pesaremos essa meada. Seja qual for o seu peso, você receberá o mais fino ouro do meu reino por ela. Trouxeram a balança, mas não importava quanto ouro fosse colocado, a meada sempre continuava pesando mais. O rei mandou trazer mais balanças, maiores que primeira, e despejou todo seu tesouro nelas, mas a meada de seda continuava pesando mais. Então, no auge da exasperação, e rei tirou a coroa de sua cabeça e colocou-a na balança. No mesmo instante a balança se equilibrou e o rei sorriu. - Onde você conseguiu essa seda, minha querida? Ele perguntou a Catarina. - De minha Patroa, disse Catarina. - Impossível! Gritou o rei. Que tipo de mulher é sua patroa para possuir uma seda mágica como essa? Então Catarina contou ao rei tudo o que havia lhe acontecido, e ele tomou-lhe as mãos entre as suas: - Vou me casar com você em vez de com a jovem à qual eu havia sido prometido. Ele disse e assim aconteceu. Daí em diante, Catarina, que tinha sofrido tanto em sua juventude, viveu até se tornar uma senhora bem velhinha, e foi feliz até o momento de sua morte como rainha desse longínquo país. Extraído de 'World Tales', Idries Shah, Octagon Press.