19 dezembro 2010

O Sultão que se transformou num exilado

Conta-se que um sultão egípcio convocou certa vez uma reunião de conselheiros eruditos, e logo, como costuma acontecer, iniciou-se uma discussão. O tema era a Travessia Noturna do Profeta Maomé.

Diz-se que naquela ocasião o Profeta foi removido de seu leito para as esferas celestiais. Durante esse período pode ver o paraíso e o inferno, conferenciou com Deus noventa mil vezes, viveu muitas outras experiências, sendo trazido de volta a seu quarto quando a cama ainda estava morna. Uma moringa cheia d'água que fora derrubada e derramada por ocasião do vôo celestial ainda não se esvaziara quando o Profeta retornou.

Alguns sustentavam ser isso possível graças a uma maneira diferente de calcular o tempo. O sultão afirmava ser algo impossível.

Os sábios disseram então que tudo era possível para o poder divino.

Mas essa declaração não satisfez o rei.

As notícias sobre tal debate chegaram finalmente ao conhecimento do xeque sufi Shahabudin, que se apresentou imediatamente ante a corte.

O sultão demonstrou a devida humildade para com o mestre, que disse:

- Proponho proceder sem mais demora a minha demonstração, pois saibam que as duas interpretações do problema são incorretas, e que há elementos de verificação segura que podem explicar as tradições, sem necessidade de recorrer a especulações rotineiras ou a uma "logicidade" insípida e mal informada.

Havia quatro janelas no salão de audiências. O sufi abriu uma delas, por onde então o sultão olhou para fora. Numa montanha ao longe ele viu um exército invasor, cujas fileiras pareciam intermináveis, marchando rumo ao castelo. Ficou terrivelmente assustado.

- Peço-lhe que esqueça o que viu, pois não é nada - disse o sufi.

Assim dizendo, fechou a janela e voltou a abrí-la. Dessa vez não se via ninguém lá fora.

Mas quando abriu outra das janelas, a cidade estava sendo devorada pelas chamas. E o sultão gritou alarmado.

- Não há razão para alarma, sultão, pois não é nada - disse o sufi. Quando voltou a fechar e abrir em seguida a janela, não havia nenhum sinal de incêndio.

Ao ser aberta, a terceira janela deixou à vista uma torrente que já ameaçava inundar o palácio.

E, de novo, repetiu-se o fenômeno: a inundação não existia.

Quando a quarta janela foi aberta, em lugar do usual deserto, via-se agora um jardim paradisíaco. Mas ao ser novamente fechada e reaberta a janela o belo cenário desaparecera.

Então o xeque sufi ordenou que trouxessem uma vasilha com água, e pediu ao sultão que mergulhasse sua cabeça nela por um momento. Tão logo fez o que lhe era solicitado, o sultão encontrou-se sozinho numa praia deserta, um lugar que desconhecia inteiramente.

Sentiu-se enfurecido de repente com aquele feitiço mágico do aleivoso xeque e jurou vingar-se dele.

Logo ele encontrou uns lenhadores que lhe indagaram quem era. Impossibilitado de revelar sua verdadeira condição, lhes disse que era um náufrago. Então eles lhe deram algumas roupas, e se dirigiu a um povoado. Um ferreiro, vendo-o vagar ao acaso, perguntou-lhe quem era.

- Um mercador náufrago, agora sem recursos, dependendo da caridade de lenhadores - respondeu o sultão.

O ferreiro lhe contou então algo sobre um certo costume daquele lugar. Todos os forasteiros poderiam pedir em casamento a primeira mulher que saísse da casa de banhos, e ela teria que aceitar o pedido. Foi ao local indicado e viu sair dali uma bela moça. Perguntou-lhe se já era casada, e tendo obtido resposta afirmativa, perguntou à outra mulher, que era feia, e logo à seguinte. A quarta era realmente bela. Ela disse que era solteira, mas o recusou, desagradada por seu aspecto comum e sua roupa gasta.

Um pouco depois, um homem plantou-se diante dele, dizendo:

- Fui enviado aqui em busca de um homem andrajoso. Por favor, acompanhe-me.

O sultão acompanhou o servo e foi por este levado a uma casa magnífica, ficando a repousar durante horas num confortável e amplo quarto. Horas depois, quatro mulheres formosas e vestidas com elegância incomum entraram no aposento precedendo a uma quinta jovem de surpreendente beleza. Nela o sultão reconheceu a última mulher a quem fizera a proposta de casamento na saída da casa de banhos.

Ela lhe deu as boas-vindas e explicou que sua pressa em retornar à casa fora devida aos preparativos para a chegada do estranho. Esclareceu também que se comportara com arrogância horas antes por ser tal atitude um costume usual naquele país, praticado por todas as mulheres na rua.

Foi servida então uma refeição excelente. Maravilhosas roupagens foram trazidas e presenteadas ao sultão, enquanto uma música de acordes suaves era executada.

O sultão viveu sete anos com sua nova esposa, até dilapidarem todo o patrimônio pertencente a ela. Então a mulher lhe disse que agora ele devia sustentar a ela e a seus sete filhos.

Lembrando-se de seu primeiro amigo na cidade, o sultão voltou a procurar o ferreiro a fim de lhe pedir um conselho. Já que o sultão não tinha nenhum negócio ou ofício, o ferreiro lhe sugeriu ir ao mercado e oferecer seus serviços como entregador de encomendas.

Transportando pacotes pesadíssimos, após um dia de trabalho, o sultão só obteve uma décima parte do dinheiro necessário para a alimentação de sua família.

No dia seguinte, o sultão dirigiu-se novamente para a praia, onde encontrou o lugar exato do qual emergira havia sete anos. Disposto a rezar suas orações, começou a lavar-se na água. Foi quando, de modo súbito e patético, se achou de novo em seu palácio, com a vasilha de água, o xeque sufi e seus vassalos.

- Passei sete longos anos de desterro, homem perverso!- bradou o sultão.

Sete anos, uma família numerosa e tendo que trabalhar como carregador! Não teme a Deus, o Todo-Poderoso, por essa ação?

- Mas faz apenas um instante que o senhor mergulhou sua cabeça na água desta vasilha - retrucou o mestre sufi.

Todos os cortesãos confirmaram tal declaração.

O sultão não se deu por convencido, começando a dar ordens para a decapitação do xeque. Este, percebendo de saída o que ia ocorrer, graças a seu sexto sentido, pôs em prática o dom denominado Ilm el-Ghaibat, isto é, A Ciência da Ausência. Deslocou-se assim corporalmente e de maneira instantânea para Damasco, a muitos dias de distância dali.

Foi de lá que escreveu uma carta ao rei:

"Sete anos passaram para vós, como já tereis percebido, enquanto permanecestes por um instante com a cabeça dentro d'água. Isto ocorre graças ao emprego de certas faculdades, e não possui nenhum significado especial exceto como ilustração do que pode vir a acontecer. Por acaso, segundo a tradição do feito de Maomé, o leito do Profeta não permaneceu morno, e a jarra com água?"

"O detalhe importante não consiste em que alguma coisa tenha acontecido ou não. Tudo é possível de acontecer.

O importante, na verdade, é o significado do acontecimento. Em vosso caso, não houve nenhum. Mas no do Profeta houve ricas significações."

Costuma ser dito que cada trecho do Alcorão possui sete significados, cada um aplicado ao estado de espírito do leitor ou do ouvinte.
Esta narrativa, como muitas outras do estilo sufi, enfatiza a frase de Maomé:

"Fale com cada pessoa de acordo com o grau de seu entendimento."

Ibrahim Khawwas assim define o método sufi: "Demonstre o desconhecido com palavras que os ouvintes chamam de 'conhecidas'."

Esta versão foi extraída do manuscrito intitulado Hu-Nama (Livro de Hu), da coleção de Nawab de Sardhana, datado de 1596.


 


 

Extraído de

'Histórias dos Dervixes'

Idries Shah

Nova Fronteira 1976

19 novembro 2010

O presságio

O rei estava de mau humor. Quando saía do palácio para caçar, esbarrou em Nasrudin.
- É um mau presságio ver um mulá quando se vai caçar - gritou para seus guardas. Não deixem que ele me olhe, batam nele para que saia do meu caminho!
A ordem foi cumprida. A caçada, porém, foi um sucesso.
O rei mandou buscar Nasrudin.
- Sinto muito mulá. Pensei que era um mau presságio, mas comprovei que não é bem assim.
- Vossa Majestade pensou que eu era um mau presságio! - disse Nasrudin - Olha-me e tem boa sorte. Eu o olho e levo uma surra. Quem é mau presságio para quem?

18 novembro 2010

O Principe, o Mestre e a Águia

Era uma vez uma rainha cujo marido havia morrido quando o seu filho tinha somente 05 anos. Ela foi então nomeada regente do reino até que seu filho completasse 18 anos e fosse capaz de governar.
O único defeito da rainha era que amava demasiadamente seu filho, Hasan, e lhe permitia fazer qualquer coisa que desejasse. E assim, apesar de ser uma boa monarca, seu filho ficava mais e mais teimoso e cheio de caprichos à medida que crescia.
Um dia a rainha chamou seu grão-vizir e lhe disse:
- Diga-me francamente o que posso fazer com meu filho.
É insolente, orgulhoso e muito difícil de controlar. Que posso fazer para corrigir os seus defeitos agora, antes que seja demasiado tarde?
O vizir respondeu:
- Coloque o príncipe aos cuidados de um mestre, e assim ele poderá adquirir sabedoria.
- Onde há um mestre que possa ajudar meu filho? – perguntou a rainha.
- Neste momento se encontra na cidade um velho homem sábio que dirige Al Azhar, a universidade do Islã. Irei falar-lhe, direi que o príncipe necessita de seu ensinamento, e talvez ele queira vir.
- Traga-o imediatamente, se puder – disse a rainha.
Então o vizir partiu, e logo retornou com o mestre, que tomou o príncipe sob os seus cuidados.
Todos os dias o ancião e o menino se sentavam para estudar e ler.
O mestre lhe contava sobre as maravilhas do mundo, da sabedoria do sagrado Corão e da ciência exata da álgebra.
Todas as semanas a rainha mandava buscar o mestre e perguntava:
- Como está progredindo meu filho?
O mestre sacudia a cabeça e se retirava.
Um dia a rainha perguntou:
- Meu filho agora está progredindo, mestre?
- Ele ainda não aprendeu que um príncipe deve ser humilde, que um rei é um servidor de seu povo e que não há poder a não ser em Deus.
- O que podemos fazer? – perguntou a rainha.
- Majestade, deixe-me levá-lo para viajar comigo – disse o mestre. – Se pudermos estar mais perto da natureza talvez isso ajude a mudar o seu caráter.
A rainha aceitou, e os dois partiram vestidos com roupas simples como as que usam os andarilhos.
No fim do primeiro dia de viagem, quando se sentaram para fazer café ao lado de um pequeno fogo, dois pássaros apareceram como o nada, pousaram sobre o alforje do ancião e começaram a gorjear.
- Faz muitos anos que aprendi a linguagem dos pássaros – disse o mestre, - mas agora me arrependo de tê-lo feito.
- Por que? – perguntou o príncipe.
A principio o mestre não queria explicar a Hasan o que os pássaros haviam dito, mas o menino insistiu tanto que afinal ele falou:
- O primeiro pássaro estava dizendo que no tempo em que fores rei haverá grande regozijo entre os pássaros que comem frutas, pois os jardins e os hortos serão abandonados e os pássaros poderão alimentar-se em paz. Ninguém os incomodará porque todo o povo destas terras terá ido embora. Ninguém quererá viver sob um reinado tão impopular.
- Que dizia o outro pássaro? – perguntou Hasan.
- O segundo pássaro disse que ele também ficara contente, pois haverá muitos gafanhotos para comer. Não haverá gente suficiente para atear fogo nos campos e afugentar os gafanhotos quando eles chegarem – foi a resposta do mestre.
No dia seguinte chegaram a um oásis onde os camelos estavam bebendo. Quando os viajantes tiraram os seus cantis os camelos começaram a fazer ruídos, como resmungos, entre si. O ancião sorriu ao escutá-los.
O que estão dizendo os camelos? – perguntou o príncipe.
A principio o mestre não quis responder, mas Hasan insistiu e finalmente conseguiu que falasse:
- Eles estão se queixando porque quando fores rei haverá tanta gente aqui dando de beber aos animais e preparando-se para abandonar o país para viver em outro lugar que será muito difícil para eles virem beber – disse o mestre.
O príncipe e o ancião seguiram viajando por alguns dias até que pararam ao pé de uma montanha muito alta onde, sobre uma ponta rochosa, havia um ninho e filhotes de águia.
Ao aproximar-se, puderam ouvir a águia piando a seus filhotes, e o ancião traduziu:
- Ela está dizendo a seus filhotes que quando ficarem adultos e tu estiveres no trono deverão caçar ovelhas nos reinos vizinhos, pois as daqui estarão magras e fracas. As cobras e as lagartixas tomarão sol entre as ruínas da tua capital, e a grande mesquita estará vazia às sextas-feiras, quando tu fores rei. A menos...
O mestre parou de falar, mas Hasan lhe disse:
- Por favor, dize-me o que disse a águia.
- Ela disse que se corrigires tua conduta agora, e melhorares dia a dia, então teu nome será querido e teu reino será grande e feliz.
O príncipe não falou, mas o mestre viu que ele estava refletindo sobre tudo que havia ocorrido.
- Voltamos agora ao palácio para continuarmos com nossos estudos? – perguntou o mestre.
Hasan concordou.
Regressaram pelo mesmo caminho que tinham ido, e o mestre se alegrava em ver que seu aluno era a cada dia mais amável e reflexivo. Finalmente Hasan parecia haver compreendido o que significavam as suas lições e agora realmente se esforçava por aprender.
O ancião foi ver a rainha e falou:
- Agora eu posso partir, pois o príncipe está se preparando para transformar-se em rei. Será um bom soberano, porque agora sabe que antes de poder governar os outros ele deve ser capaz de governar a si mesmo.
A rainha, encantada, ofereceu-lhe um posto na corte, mas ele disse:
- Não. Tenho que continuar meu caminho, pois ainda tenho muito trabalho a fazer.
Quando chegou o tempo em que se tornou rei, Hasan recordou as coisas que seu mestre lhe havia ensinado, e governou bem e sabiamente até o final de sua vida.
Extraido do livro: Historias da Tradição Sufi
Ed.: Dervish

O Visitante de Longe

Uma vez, de um mundo que está além das estrelas, um homem saiu do país da Luz, para resgatar da Terra uma jóia preciosa que estava sob a guarda de uma perigosa serpente.
Quando chegou ao país onde estava a jóia, mudou as feições do rosto com o objetivo de que as pessoas do lugar não percebessem que vinha de outra parte e se pusessem na defensiva. Mas, como tinha que se alimentar como eles e estava em sua atmosfera, caiu também em estado de sono e esqueceu sua missão.
Encontrou outras pessoas que o reconheceram e o advertiram, mas não conseguiu evitar isso.
Agora, no país da Luz, seu pai se deu conta do que acontecera a seu filho e enviou-lhe depressa uma mensagem, dizendo-lhe que despertasse e continuasse sua tarefa.
A mensagem sacudiu o homem, em cuja mente começou a aflorar a lembrança de sua origem. Acordou. Resgatou a jóia e matou a serpente.
Depois, voltou e mudou as feições do rosto de acordo com as pessoas do país da Luz. Quando chegou em casa, reconheceu suas origens com maior clareza do que quando vivia aí.

Extraído de 'O Sufismo no Ocidente'
Edições Dervish 1984

17 novembro 2010

O anuncio...

Nasrudin postou-se na praça do mercado e dirigiu-se à multidão:

“Ó povo deste lugar! Querem conhecimento sem dificuldade, verdade sem falsidade, realização sem esforço, progresso sem sacrificio?”

Logo juntou-se um grande número de pessoas com todo mundo gritando:

“Queremos, queremos!”

“Era só pra saber”, disse o mullá. “Podem confiar em mim, contarei a vocês tudo a respeito caso algum dia descubra algo assim.”

30 outubro 2010

O Kashkul

Conta-se que um dia um dervixe deteve um rei em plena rua.

- Como te atreves – disse o rei, - tu, um homem insignificante, a interromper os passos de teu soberano?

- E tu - replicou o dervixe, - como podes ser um soberano se nem ao menos consegue encher meu ‘kashkul’, a tigela que uso para mendigar?

Ele ergueu o ‘kashkul’ e o rei ordenou que o enchessem de ouro. Mas à medida que o enchiam de moedas elas desapareciam, e o ‘kashkul’ parecia estar sempre vazio. Trouxeram-lhe fardos de ouro, e a surpreendente tigela os devorava.

- Parem! – gritou o rei. – Este ilusionista está esvaziando meu tesouro.

- Tu achas que estou esvaziando teu tesouro – observou o dervixe, - mas outros acham que estou simplesmente demonstrando uma verdade.

- Que verdade? – perguntou o rei.

- A verdade de que ‘kashkul’ representa os desejos do homem, e o ouro o que se dá ao homem. A capacidade do homem para devorar não tem fim se ele não se transformar. Olha, o ‘kashkul’ comeu quase toda a tua riqueza, mas continua sendo uma casa de coco cortada, não se alterou em nada pela natureza do ouro. Se desejas, entra no ‘kashkul’ – continuou o dervixe. – Ele te devorará também. Como, diante disso, pode um rei pensar que é importante?

Extraído do livro: ”Historias da Tradição Sufi

13 setembro 2010

Um Noviço Reclama a Seu Sheik Das Tentações Do Demônio

Um homem negligente foi queixar-se das tentações do demônio a um sheik que jejuava: "O diabo, esse ladrão de estradas, obstruiu para mim o caminho, roubou-me a fé e aniquilou em mim a religião". O jejuador lhe disse: "Meu jovem, pouco antes de ti o demônio fez o mesmo caminho até aqui para reclamar. Estava aflito e contrariado, lançando pó sobre a cabeça por causa de tua injustiça para com ele. 'Meu domínio é o mundo', eu o ouvi dizer, 'e aquele que é inimigo do mundo não está sob minha dependência. Diz a esse novo peregrino do caminho de Deus que retire suas mãos do que é meu. Se eu o ataco é porque a todo momento seus dedos esbarram em meus negócios. Se ele me deixar em paz poderá seguir livre o seu caminho'".

O diabo colocou suas mãos sobre minha vida temporal, porém deixou livre a via do espírito; assim, tomei a firme resolução de ser fiel a religião.

Extraído do livro: "A Linguagem dos Passáros" de Attar

20 agosto 2010

As Longas Colheres

Uma vez, num reino não muito distante daqui, havia um rei que era famoso tanto por sua majestade como por sua fantasia meio excêntrico.

Um dia ele mandou anunciar por toda parte que daria a maior e mais bela festa de seu reino. Toda a corte e todos os amigos do rei foram convidados.

Os convidados, vestidos nos mais ricos trajes, chegaram ao palácio, que resplandecia com todas as suas luzes.

As apresentações transcorreram segundo o protocolo, e os espetáculos começaram: dançarinos de todos os países se sucediam a estranhos jogos e aos divertimentos mais refinados.

Tudo, até o mínimo detalhe, era só esplendor. E todos os convidados admiravam fascinados e proclamavam a magnificência do rei.

Entretanto, apesar da primorosa organização da festa, os convidados começaram a perceber que a arte da mesa não estava representada em parte alguma.

Não se podia encontrar nada para acalmar a fome que todos sentiam mais durante à medida que as horas passam.

Essa falta logo se tornou incontrolável.

Jamais naquele palácio nem em todo o país aquilo havia acontecido.

A festa não parava de esforçar-se para atingir o auge, oferecendo ao público uma profusão de músicos maravilhosos e excelentes dançarinos.

Pouco a pouco o mal-estar dos espectadores se transformou numa surda mas visível contrariedade.

Ninguém no entanto ousava elevar a voz diante de um rei tao notável.

Os cantos continuaram por horas e horas. Depois foram distribuídos presentes, mas nenhum deles era comestível.

Finalmente, quando a situação se tornou insustentável, e a fome intolerável, o rei convidou seus hóspedes a passarem para uma sala especial, onde uma refeição os aguardava.

Ninguém se fez esperar. Todos, como um conjunto harmonioso, correram em direção ao delicioso aroma de uma sopa que estava num enorme caldeirão no centro da mesa.

Os convidados quiseram servir-se, mas grande foi sua surpresa ao descobrirem, no caldeirão, enormes colheres de metal, com mais de um metro de comprimento. E nenhum prato, nenhuma tigela, nenhuma colher de formato mais acessível.

Houve tentativas, mas só provocaram gritos de dor e decepção. Os cabos desmesurados não permitiam que o braço levantasse à boca a beberagem suculenta, porque não se podiam segurar as escaldantes colheres e não ser por uma pequena haste de madeira em suas extremidades.

Desesperados, todos tentavam comer, sem resultado. Até que um dos convidados, mais esperto ou mais esfaimado, encontrou a solução: sempre segurando a colher pela haste situada em sua extremidade, levou-a à... boca de seu vizinho, que pôde comer à vontade.

Todos o imitaram e se saciaram, compreendendo enfim que a única forma de alimentar-se, naquele palácio magnífico, era um servindo ao outro.

08 agosto 2010

Isto Também Passará

Um dervishe, depois de uma árdua e longa viagem através do deserto, chegou por fim à civilização. O povoado se chamava Colinas Arenosas e era quente e seco. Não havia muito verde, exceto feno para o gado e alguns arbustos. As vacas eram o principal meio de vida das pessoas de Colinas Arenosas. O dervishe perguntou educadamente a alguém que passava se havia algum lugar onde poderia encontrar comida e abrigo para aquela noite.

- Bem, disse o homem coçando a cabeça – não temos um lugar assim no povoado, mas estou certo de que Shakir ficará encantado de lhe brindar com sua hospitalidade esta noite.

Então o homem indicou o caminho da fazenda de propriedade de Shakir, cujo nome significa "o que agradece constantemente ao Senhor".
No caminho até a fazenda, o dervishe parou perto de um pequeno grupo de anciões que estavam fumando cachimbo e eles confirmaram a direção. Eles disseram que Shakir era o homem mais rico da região. Um dos homens disse que Shakir era dono de mais de mil vacas.

- E isso é maior do que a riqueza de Haddad, que vive no povoado ao lado.

Pouco tempo depois o dervishe estava parado em frente a casa de Shakir a admirando. Shakir, que era uma pessoa muito hospitaleira e amável, insistiu para que o dervishe ficasse por alguns dias em sua casa.

A mulher e as filhas de Shakir eram igualmente amáveis e deram o melhor para o dervishe. Inclusive, ao final de sua estadia, lhe deram uma grande quantidade de comida e água para sua viagem.

No seu caminho de volta para o deserto, o dervishe não conseguia parar de se perguntar o significado das últimas palavras de Shakir. No momento da despedida o dervishe havia dito:

- Dê Graças a Deus pela riqueza que tens.

- Dervishe – havia respondido Shakir – não se engane pelas aparências, porque isto também passará.

Durante o tempo em que havia passado no caminho Sufi, o dervishe havia compreendido que qualquer coisa que ouvisse ou visse durante sua viagem lhe oferecia uma lição para aprender, e portanto, valia a pena considerá-la. Além de tudo, essa era a razão pela qual havia feito a viagem, para aprender mais. As palavras de Shakir ocuparam seus pensamentos e ele não estava seguro de ter compreendido completamente o seu significado.

Quando estava sentado sob a sombra de um arbusto para rezar e meditar, recordou do ensinamento Sufi sobre guardar silencio e não se precipitar em tirar conclusões para finalmente alcançar a resposta. Quando chegasse o momento, compreenderia, já que havia sido ensinado a permanecer em silêncio e sem fazer perguntas. Para tanto, fechou a porta dos seus pensamentos e submergiu sua alma em um estado de profunda meditação.

E assim se passaram mais cinco anos, viajando por diferentes terras, conhecendo pessoas novas e aprendendo com suas experiências no caminho. Cada nova aventura oferecia uma lição a ser aprendida. Entretanto, como requeria o costume Sufi, permanecia em silêncio, concentrado nas ordens do seu coração.

Um dia, o dervishe voltou a Colinas Arenosas, o mesmo povoado onde havia passado alguns anos antes. Se lembrou de seu amigo Shakir e perguntou por ele.

- Está vivendo no povoado ao lado, a dez milhas daqui. Agora trabalha para Haddad – respondeu um homem do povoado.

O dervishe lembrou surpreendido que Haddad era o outro homem rico da região. Contente com a idéia de voltar a ver Shakir outra vez, se apressou para ir ao povoado vizinho. Na maravilhosa casa de Haddad, o dervishe foi bem recebido por Shakir, que agora parecia muito mais velho e estava vestido em andrajos.

- O que lhe aconteceu? – quis saber o dervishe.

Shakir respondeu que uma enchente três anos antes o havia deixado sem vacas e sem casa; assim ele e sua família se tornaram empregados de Haddad, que sobreviveu à enchente e agora desfrutava da posição de homem mais rico da região. Entretanto, esta alteração na sorte não havia mudado o caráter amistoso e atencioso de Shakir e de sua família.Cuidaram amavelmente do dervishe na sua cabana durante os dois dias e lhe deram comida e água antes dele sair. Na despedida, o dervishe disse:

- Sinto muito pelo que aconteceu com você e sua família. Mas sei é que Deus tem um motivo para aquilo que faz..
- Mas não se esqueça, isto também passará.

A voz de Shakir ressoou como um eco nos ouvidos do dervishe. O rosto sorridente do homem e seu espírito tranqüilo não abandonavam seu pensamento.

- O que ele quer dizer com esta frase desta vez?

O dervishe sabia agora que as últimas palavras de Shakir na sua visita anterior se anteciparam às mudanças que ocorrerem. Mas dessa vez, se perguntava o que poderia justificar um comentário tão otimista. Assim deixou a frase de lado outra vez, preferindo esperar pela resposta.
Passaram meses e anos, e o dervishe, que estava ficando velho, continuou viajando sem nenhuma intenção de parar.

Curiosamente, suas viagens sempre o levavam de volta ao povoado onde vivia Shakir. Assim sendo, demorou sete anos para voltar a Colinas Arenosas e Shakir estava rico outra vez. Agora vivia na casa principal da propriedade de Haddad e não na pequena cabana.

- Haddad morreu há dois anos – explicou Shakir – e, como não tinha herdeiro, decidiu deixar sua fortuna para mim como recompensa dos meus leais serviços.

Quando estava terminando sua visita, o dervishe se preparou para a viagem mais importante de sua vida: cruzaria a Arábia Saudita para fazer sua peregrinação a pé até Meca, uma antiga tradição entre seus companheiros. A despedida de seu amigo não foi diferente das outras vezes. Shakir repetiu sua frase favorita:

- Isto também passará.

Depois da peregrinação, o dervishe viajou à Índia. Ao voltar a sua terra natal, Pérsia, decidiu visitar Shakir mais uma vez para ver o que havia acontecido com ele. Assim, mais uma vez se pós em marcha para Colinas Arenosas. Mas em vez de de encontrar seu amigo Shakir, lhe mostraram uma humilde tumba com a inscrição "Isto também passará". O dervishe ficou ainda mais surpreendido do que das outras vezes, quando o próprio Shakir havia pronunciado estas palavras.

- As riquezas vem e as riquezas se vão – pensou o dervishe – mas, como pode trocar um túmulo?

A partir de então o dervishe adquiriu o costume de visitar a tumba de seu amigo de tantos anos e passava algumas horas meditando na morada de Shakir. Entretanto, em uma de suas visitas o cemitério e a tumba haviam desaparecido, arrasados por uma enchente. Agora, o velho dervishe havia perdido o único vestígio deixado por um homem que havia marcado tão excepcionalmente as experiências de sua vida. O dervishe permaneceu durante horas nas ruínas do cemitério, olhando o chão fixamente. Finalmente, levantou a cabeça em direção ao céu e então, como se houvesse descoberto um significado mais elevado, abaixou a cabeça em sinal de confirmação e disse:

- Isto também passará.

Finalmente o dervishe ficou muito velho para viajar, decidindo se fixar e viver tranqüilo e em paz pelo resto de sua vida.

Os anos se passaram e o ancião se dedicava a ajudar a quem se acercava dele para os quais aconselhava e a compartilhar suas experiências com os jovens. Vinha gente de todas as partes para beneficiar-se de sua sabedoria. Finalmente, sua fama chegou até o grande conselheiro do rei, que casualmente estava buscando alguém com grande sabedoria.

O fato era que o rei desejava que lhe fizessem um anel. O anel teria de ser especial: devia ter uma inscrição de tal forma que quando o rei se sentisse triste, olhasse o anel e ficaria contente e se estivesse feliz, ao olhar o anel se entristeceria.

Os melhores joalheiros foram contratados e muitos homens e mulheres se apresentaram para dar sugestões sobre o anel, mas o rei não gostava de nenhuma. Então o conselheiro escreveu para o dervishe explicando a situação, pedindo ajuda e o convidando para ir ao palácio. Sem abandonar sua casa, o dervishe enviou sua resposta.

Poucos dias mais tarde, um anel foi feito com uma esmeralda e foi entregue ao rei. O rei, que havia estado deprimido por vários dias, mal o recebeu, botou o anel no dedo e olhando-o, deu um suspiro de decepção. Logo começou a sorrir e, pouco depois, ria às gargalhadas.

No anel que usava estavam escritas as palavras "Isto também passará".

Primeira Vez

O Mulla foi convidado para uma casa de campo no fim de semana.

Seu anfitrião tinha alguns cavalos que desfilaram perante os convidados, para que cada um pudesse escolher sua montaria.

O chefe de cavalos, anunciou: "Este foi montado pelo príncipe tal e -tais; este pelo Duque de Blankshire. . ."

'O Mulla não quis ser superado: "Traga-me, disse ele, um cavalo que nunca foi montado por ninguém."

Gratidão

Certo dia, enquanto Nasrudin trabalhava em sua granja, um espinho penetrou seu pé. Incrivelmente ele disse: "Obrigado Deus meu, obrigado!" e prosseguiu:

"É uma benção que no dia de hoje, eu não estivesse com meus sapatos novos!"

O Fim do mundo

- Quando o fim do mundo chegará, Mulla?

- O fim de que mundo?


- Bem, quantos existem?


- Dois, o maior e o menor. Se minha esposa morre, isso é o fim Menor do Mundo. Mas se eu morrer - isso é o fim maior do mundo.

O Maior idiota do reino

Nasrudin foi enviado pelo rei com a missão com a missão de encontrar o homem mais tolo do reino e trazê-lo ao palácio para servir como bobo da corte. O mulla viajou até cada cidade e vila, mas não conseguiu encontrar um homem estúpido o suficiente para o trabalho. Finalmente, retornou sozinho.

"Conseguiu localizar o maior idiota do nosso reino?", indagou o monarca.

"Sim, Majestade", replicou Nasrudin, "mas ele está ocupado demais procurando idiotas para assumir o cargo."

Extraído do livro: The World of Nasrudin de Idries Shah

02 agosto 2010

O Mestre da opção

Três homens jovens, tendo ouvido falar da grande santidade e milagres maravilhosos praticados pelo Mestre Sufi Kilidi, se encontraram no caminho que levava a sua morada. Seguiram juntos e iam falando do que sabiam a respeito do Caminho e suas dificuldades.

"A sinceridade para com o mestre é essencial", disse o primeiro jovem, "e me concentrarei nisto, se eu for aceito como discípulo, para eliminar meu próprio egoísmo".

"A sinceridade", disse o segundo discípulo, "é claro que significa total obediência, principalmente quando se é tentado a rebelar-se.


E eu certamente atentarei para este fato. Mas a obediência significa também evitar a hipocrisia, ou seja, obedecer desejando internamente desobedecer, e inclui a generosidade desprovida de orgulho. Isto é o que eu buscarei alcançar".


"A sinceridade, evitando o egoísmo, obediência, desapego a hipocrisia, generosidade", disse o terceiro, "são aspectos essenciais. Mas eu tenho ouvido dizer que se um discípulo trata de inserir estes atributos sobre sua personalidade não modificada, eles se tornam meramente mecânicos, mímicos, camuflando as características negativas que permanecem escondidas para se manifestarem quando menos se espera. Seguramente, o verdadeiro discípulo não é aquele que faz o oposto do que ele sente que é mau e nem se comporta como um simulacro de 'bondade'. Dizem dele que é um 'Buscador da Verdade', o qual é mestre da opção, ou seja, pratica o bem ou faz o que tem que ser feito".


Chegaram à casa do Sufi e foi-lhes permitido assistir a algumas de suas conferências e tomar parte em vários exercícios de desenvolvimento espiritual.


Um dia o Sufi disse-lhes: "Quer estejamos em casa ou na estrada nós estamos todos sempre em viagem. Mas para produzir este efeito ilustrativo darei agora a vocês a oportunidade de observar e tomar parte em uma tal expedição, de uma forma perceptível".


Os quatro partiram. Depois de estarem na estrada por algum tempo, o primeiro discípulo disse ao Sufi:


"Viajar é indubitavelmente bom, mas minha mente se inclina ao serviço, à situação Sufi na qual se possa obter compreensão através de trabalho para os outros e para a verdade".


O Sufi respondeu: "Gostaria de se estabelecer neste cruzamento e ficar servindo às pessoas até que eu o chame para prosseguimento dos estudos?"


O jovem homem ficou alegre por lhe ser dada esta oportunidade de realizar uma tarefa própria e os outros deixaram-no então, ali, para que atendesse às necessidades dos viajantes.


Algum tempo mais tarde, o segundo discípulo disse ao Sufi:


"Desejo vivamente livrar-me do meu egocentrismo para que o meu


Eu Superior seja capaz de exercer a verdadeira sinceridade. Gostaria de parar neste povoado e explicar às pessoas daqui algo do respeito que lhes tenho e ao Caminho, pois eles nenhuma compreensão têm".


"Se isto é o que você quer, eu o permito", disse o Sufi.


Assim que, deixando-o ali em um estado de inefável satisfação, o Sufi e seu discípulo remanescente seguiram viagem. Alguns dias mais tarde, os dois chegaram a um lugar onde pessoas brigavam para decidir qual delas teria uma certa área de terra para cultivar e qual teria outra.


O jovem homem disse ao Sufi: "Estranho eles não verem que trabalhando juntos teriam mais benefícios pois conjugando seus recursos e seus esforços poderiam alcançar a prosperidade".


"Agora", disse o Sufi , "você pode perceber que é você o mestre da opção aqui. Você pode ver alternativas que os outros não podem. Sua opção é falar-lhes ou passar silenciosamente."


"Eu não quero falar-lhes", disse o jovem, "posto que eles podem não me entender e provavelmente se voltariam contra mim. Assim nada se ganharia e eu só faria me desviar de meu objetivo no Caminho."


"Muito bem", disse o Sufi ,"intervirei eu".


Ele se aproximou das pessoas e, por algum meio só conhecido por ele, fez com lhe dessem a terra. Ele se estabeleceu ali e depois de alguns poucos anos, quando ele tinha ensinado a cada um a co-participar do trabalho, deu-lhes a terra e sua produção e os dois retomaram sua viagem interrompida.


Voltaram sobre seus passos e quando chegaram ao lugar onde eles tinham deixado o segundo discípulo, o terceiro discípulo notou que ele não os reconhecia. Sua aparência havia mudado através dos anos de trabalho na terra, por efeito do sol e de sua mudança de roupas.


Eles falavam mesmo, devido à longa convivência com os camponeses, de uma maneira um pouco diferente.


Para o segundo discípulo portanto, eles eram dois camponeses.


O Sufi se aproximou do segundo discípulo e lhe pediu que falasse alguma coisa acerca do mestre sufi que o tinha deixado ali alguns anos antes.


"Nem me fale sobre ele", disse seu antigo aluno, "pois ele me abandonou aqui para fazer-se conhecido no mundo, dando-me a entender que voltaria e continuaria a me ensinar. Mas não tenho nenhuma palavra dele já há muitos anos".


E por alguma razão originada no mais além, tão logo ele pronunciou estas palavras, numerosos camponeses surgiram e o capturaram.


Os recém-chegados perguntaram ao chefe do grupo porque eles estavam agindo daquela maneira.


"Este homem", disse o camponês, "veio aqui e pregou a respeito de um grande homem de espírito elevado do qual ele foi discípulo. Nós o recebemos entre nós e ele se tornou rico e bem sucedido em nosso povoado. Então decidimos, cinco minutos atrás, que ele não passa de um mentiroso e embusteiro, e viemos apanhá-lo para matá-lo".


Não houve nada que os dois pudessem fazer pelo infeliz homem que foi arrastado debatendo-se, embora eles tentassem. "Você vê?" disse o Sufi, "eu tentei salvá-lo, mas aqui eu não sou o Mestre da Opção".


Eles seguiram viagem até chegarem ao lugar onde se estabelecera o primeiro discípulo. Chegando na encruzilhada, viram que também ele não os reconheceu. Quando eles se aproximaram, o Sufi perguntou-lhe onde poderiam encontrar água para beber.


O discípulo respondeu: "Eu estou totalmente desiludido com vocês viajantes. Tenho estado aqui por anos e anos tentando ajudar as pessoas e só recebi ingratidão. As pessoas não merecem ser servidas. Até mesmo meu mestre, que desertou de mim há três anos ou mais, não está preparado para me servir, voltando e dando-me os ensinamentos a que todo homem tem direito".


Nem bem estas palavras saíram de sua boca, um grupo de soldados chegou e levou o homem para trabalhos forçados.


"Nós pensamos que você fosse apenas um pobre asceta", disse seu capitão, "mas decidimos parar para observá-lo e percebemos pelo seu ar beligerante e pela maneira violenta como gesticulava, que você está forte o bastante para fazer algum serviço para o Estado".


Não obstante o Sufi e seu discípulo intercedessem, os soldados levaram o primeiro discípulo.


"Eu não sou o Mestre da Opção aqui, como você pode ver", disse o Sufi ao terceiro discípulo.


Deste modo Kilidi pode mostrar ao único discípulo que teve a paciência para entender que a compreensão dos eventos e sua ação estão


inter-relacionados, e que a maneira como uma pessoa se comporta interna e externamente determina seu progresso tanto quanto qualquer coisa feita por alguma outra pessoa.


Ele então perguntou ao discípulo: "O que você diria se lhe fosse perguntado sobre o que você aprendeu?"


O jovem disse: "As pessoas olham as coisas isoladas, imaginando que se elas fazem o que desejam fazer, conseguirão seguramente seus objetivos. Além do mais, seu bem produz frutos e seu mal produz frutos e ninguém pode interpor-se na colheita dos frutos. E tenho aprendido que no Caminho, tudo está entrelaçado: pessoas, lugares, eventos e ações. Finalmente, tenho aprendido que, embora os maus pensamentos e ações de alguém possam remover todas as suas esperanças de progresso, existe ainda uma dádiva misericordiosa: a mim mesmo não me foi dada a permissão de continuar aprendendo à despeito de minha recusa de exercer a opção quando dela fui mestre?"


Neste momento houve um som estrondoso, e o terceiro discípulo conheceu a verdade da Compreensão Maior e assim que isto aconteceu, o Mestre Sufi Kilidi desapareceu para nunca mais ser visto novamente.


O terceiro discípulo percorreu o resto do caminho que levava à casa do mestre, onde um grande número de dervixes estavam esperando, e assim que ele entrou, colocou em seu lugar a almofada de oração de Kilidi que ele havia trazido. A almofada foi colocada sobre a cadeira do Mestre.


Os dervixes aclamaram-no com uma saudação de boas vindas, e seu líder aproximou-se do terceiro discípulo.


"Mestre", ele disse, "nós estivemos aqui esperando sob um voto de segredo por mais de três anos, uma vez que o Grande Sheik Kilidi ao nos deixar disse que ele estava retornando ao céu e que aquele que chegasse portando sua almofada de oração seria seu sucessor".


Agora este dervixe estava inteiramente oculto pela extremidade de seu turbante. Ao passar o estabelecimento às mãos do terceiro discípulo, convertido agora em Mestre, ele se levantou para seguir sua viagem, o tecido momentaneamente se afastou de seu rosto e o novo Mestre Sufi viu a face de Kilidi sorrindo diante dele.


Extraído de


'A Gazela Velada'


Idries Shah

Deus é mais forte

Ibotity tinha subido numa árvore quando o vento soprou; a árvore se partiu, Ibotity caiu e quebrou a perna.


- A árvore é forte porque quebrou minha perna – disse.


- O vento é mais forte que eu – disse a árvore.


Mas o vento disse que a colina era mais forte, já que ela podia parar o vento. Ibotity. É claro, pensou que a força estava na colina, porque ela podia parar o vento, o vento que partiu a árvore, a árvore que quebrou sua perna.


- Não disse a colina, enquanto explicava que o rato era mais forte, porque podia esburacar a colina.


- Eu posso ser morto pelo gato – contestou o rato.


Assim Ibotity pensou que o gato deveria ser mais forte.


De jeito nenhum – disse o gato, explicando que podia ser apanhado por uma corda.


Ibotity achou que a corda devia ser a coisa mais forte. A corda, porém, explicou que podia ser cortada pelo ferro. Portanto o ferro era mais forte. O ferro, por sua vez, negou ser o mais forte, já que podia ser derretido pelo fogo.


Ibotity então pensou que o fogo devia ser o mais forte, porque ele derretia o ferro que cortava a corda, a corda que prendia o gato, o gato que caçava o rato, o rato que esburacava a colina, a colina que parava o vento, o vento que partiu a árvore, que quebrou a perna de Ibotity.


O fogo disse que a água era mais forte. A água declarou que a canoa era muito mais forte, porque, porque sulcava a água. Mas a canoa foi superada pela rocha, e a rocha pelo o homem, e o homem pelo mago, e o mago pela prova do veneno, e a prova do veneno por Deus. Assim, Deus é mais forte de que tudo.


Ibotity pensou então que Deus podia vencer a prova que imobilizava o mago, que dominava o homem,que quebrava a pedra, que derrotava a canoa, que fendia a água, que apagava o fogo, que fundia o ferro, que partia a corda, que prendia o gato, que matava o rato, que esburacava a colina, que parava o vento, que rachava a árvore que quebrou a perna de Ibotity.

08 abril 2010

As Aparências

Conta o sufi Mullá Nasrudin que certa vez visitou a uma casa de banhos pobremente vestido, e foi tratado de maneira regular a mal e ao sair deixou uma moeda de ouro de gorjeta.

Na semana seguinte foi ricamente vestido e se desdobraram para atendê-lo... deixou uma moeda de cobre, dizendo:

- Esta é a gorjeta pelo tratamento da semana passada e a da semana passada, pelo tratamento de hoje.

A Mulher Perfeita

Nasrudin conversava com um amigo.

- Então, nunca pensou em casar-se?

- Sim pensei – respondeu Nasrudin. – Em minha juventude, resolvi buscar a mulher perfeita. Cruzei o deserto, cheguei a Damasco, e conheci uma mulher muito espiritual e linda; porém ela não sabia nada das coisas deste mundo.

Continuei viajando e fui a Isfahan; ali encontrei uma mulher que conhecia o reino da matéria e o espiritual, porém não era bonita.

Então resolvi ir até o Cairo, onde comi na casa de uma moça bonita, religiosa, e conhecedora da realidade material.

- E por que não casaste com ela?

- Ah, companheiro meu! Lamentavelmente ela também queria um homem perfeito.

Vivo ou Morto

O Mullá estava pensando em voz alta.

- Como sei se estou vivo ou morto?

- Não sejas estúpido – disse sua esposa – se estivesses morto, teus membros estariam frios.

Pouco tempo depois, Nasrudin se encontrava em um bosque cortando lenha. Era pleno inverno. De repente se deu conta de que suas mãos e pés estavam frios.

Sem dúvida estou morto – pensou – de modo que devo interromper meu trabalho. Os cadáveres não saem por aí caminhando, se deitou na relva.

Logo chegou uma matilha de lobos e começou a atacar o asno de Nasrudin, que estava preso a um arbusto.

- Vamos, continuem, aproveitem de um homem morto – disse Nasrudin sem mover-se – porem se estivesse vivo, não permitiria estas liberdades com meu asno!

O Custo de Aprender

Nasrudin decidiu que poderia beneficiar-se aprendendo algo novo e foi visitar a um renomado mestre de música:

- Quanto você cobra para ensinar-me tocar flauta? – perguntou Nasrudin.

- Três peças de prata no primeiro mês; depois uma peça de prata por mês – respondeu o mestre.

- Perfeito! – disse Nasrudin; - começarei pelo segundo mês.

07 abril 2010

O Urso

Um rei que gostava da companhia de Nasrudin, e também da caça, lhe ordenou que lhe acompanhasse na caça ao urso. Nasrudin estava aterrorizado.

Quando Nasrudin voltou a sua aldeia, alguém lhe perguntou: como foi a caça?

- Maravilhosa.

- Quantos ursos encontrou?

- Nenhum.

- Então, por que diz que foi maravilhosa?

- Quando se está caçando ursos, e você sou eu, não ver nenhum urso é uma experiência maravilhosa.

O Contrabandista

Nasrudin cruzava a fronteira todos os dias, com as cestas de seu burro carregadas de palha. Como admitia ser um contrabandista, quando voltava a casa a noite os guardas da fronteira lhe revistavam uma e outra vez. Revistavam sua pessoa, reviravam a palha, a submergiam em água e inclusive a queimavam de vez em quando.

Entretanto, a prosperidade de Nasrudin aumentava visivelmente.

Um dia se aposentou e foi viver em outro país, onde, alguns anos mais tarde, encontrou os guardas aduaneiros.

- Agora podes me dizer, Nasrudin, o que passavas de contrabando, que nunca conseguimos descobrir?

- Burros - respondeu Nasrudin.

As Armas do Mullá

Mullá Nasrudin iniciou uma viagem até terras distantes, motivo pelo qual levou uma espada e uma lança. No caminho, um bandido cuja única arma era um bastão, atacou e roubou seus pertences.

Quando chegou a cidade mais próxima, o Mullá contou sua desgraça aos amigos, que lhe perguntaram como havia acontecido que ele, estando armado com uma espada e uma lança, não pudera dominar a um ladrão armado com um modesto bastão.

Ele replicou: O problema foi precisamente que eu tinha as duas mãos ocupadas, uma com a espada e a outra com a lança. Como vocês crêem que eu poderia sair vitorioso?

O Erudito

Nasrudin conseguiu trabalho de barqueiro. Certo dia transportando a um erudito, o homem lhe pergunta:

- Você conhece a gramática?

- Não, em absoluto – responde Nasrudin.

- Bom permita-me dizer-lhe que você perdeu a metade de sua vida – replica com desdém o erudito.

Pouco depois o vento começa a soprar e o barco está a ponto de ser tragado pelas ondas. Justo antes de afundar, Nasrudin pergunta a seu passageiro:

- Você sabe nadar?

- Não! – responde, aterrorizado o erudito.

- Bem, permita-me dizer-lhe que você perdeu toda a sua vida!