14 junho 2009

Poesia de Rumi

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te.
Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?
Finalmente, foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!
Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
Não durmas,
senta com teus pares
A escuridão oculta a água da vida.
Não te apresses, vasculha o escuro.
Os viajantes noturnos estão plenos de luz;
não te afastes pois da companhia de teus pares.
Faltam-te pés para viajar?
Viaja dentro de ti mesmo,
e reflete, como a mina de rubis,
os raios de sol para fora de ti.
A viagem conduzirá a teu ser,
transmutará teu pó em ouro puro.
Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.
Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.
Oh, dia, levanta! Os átomos dançam,
As almas, loucas de êxtase dançam.
A abóbada celeste, por causa deste Ser, dança,
Ao ouvido te direi aonde a leva sua dança.

Ontem à noite, confidencialmente, eu disse a um velho sábio:
- Não me esconda nada dos segredos do mundo!
Muito docemente, ele me disse ao ouvido:
- Podemos compreender, mas não exprimir!
Quero fugir a cem léguas da razão,
Quero da presença do bem e do mal me liberar.
Detrás do véu existe tanta beleza: lá está meu ser.
Quero me enamorar de mim mesmo, ó vós que não sabeis!
Eu soube enfim que o amor está ligado a mim.
E eu agarro esta cabeleira de mil tranças.
Embora ontem à noite eu estivesse bêbado da taça,
Hoje, eu sou tal, que a taça se embebeda de mim.
Ele chegou... Chegou aquele que nunca partiu;
Esta água nunca faltou a este riacho
Ele é a substância do almíscar e nós o seu perfume,
Alguma vez se viu o almíscar separado de seu cheiro?
Se busco meu coração, o encontro em teu quintal,
Se busco minha alma, não a vejo a não ser nos cachos de teu cabelo.
Se bebo água, quando estou sedento
Vejo na água o reflexo do teu rosto.
Sou medido, ao medir teu amor.
Sou levado, ao levar teu amor.
Não posso comer de dia nem dormir de noite.
Para ser teu amigo
Tornei-me meu próprio inimigo.
Teu amor me tirou de mim.
De ti, preciso de ti
Noite e dia, eu queimo por ti.
De ti, preciso de ti.
Não posso dormir quando estou contigo
por causa de teu amor.
Não posso dormir quando estou sem ti
por causa de meu pranto e gemidos.
Passo as duas noites acordado
mas, que diferença entre uma e outra!
Não temos nada além do amor.
Não temos antes, princípio nem fim.
A alma grita e geme dentro de nós:
- Louco, é assim o amor.
Colhe-me, colhe-me, colhe-me!

À noite, pedi a um velho sábio
que me contasse todos os segredos do universo.
Ele murmurou lentamente em meu ouvido:
- Isto não se pode dizer, isto se aprende.
A fé da religião do Amor é diferente.
A embriaguez do vinho do Amor é diferente.
Tudo que aprendes na escola é diferente.
Tudo que aprendes do Amor é diferente.
- Vem ao jardim na primavera, disseste.
- Aqui estão todas as belezas, o vinho e a luz.
Que posso fazer com tudo isso sem ti?
E, se estás aqui, para que preciso disso?

12 junho 2009

O jovem que não conhecia o medo

Certo dia, uma mulher e seu filho tomavam ar fresco ao cair da tarde, sentados no pátio de sua casa. A casa ficava muito distante do povoado, e quando o sol se pôs e a escuridão da noite envolveu tudo em suas sombras, a mulher disse ao jovem:

- Meu filho, vá e feche a porta, pois estou com medo.

- O que é o medo? – Perguntou o rapaz.

- Ora sentir temor – ela respondeu.

Mas a resposta de sua mãe não deixou o jovem satisfeito.

- Não sei o que você quer dizer, mãe. Tenho de experimentar o medo. Vou dar um passeio.

E sem prestar muita atenção aos protestos de sua mãe, adentrou-se na noite, afastando-se da casa. Caminhou até o sopé de uma montanha, onde mais de trinta ladrões se encontravam sentados em volta de uma grande fogueira. O jovem aproximou-se deles e um dos bandidos, que parecia ser o capitão, falou:

- Nem mesmo um pássaro se aventura a voar para esses lados, e nenhuma caravana cruza este caminho. Como você se atreve a aproximar-se de nós?

- Pretendo conhecer o medo. Mostrem-no a mim.

- O medo está aqui, conosco – disse o ladrão.

- Onde? – Perguntou o rapaz.

Então, o ladrão respondeu:

- Pegue este pote, farinha, manteiga e açúcar. Entre nesse cemitério e celebre uma festa com os defuntos.

- Assim farei – respondeu o jovem.

No cemitério acendeu uma fogueira e começou a misturar a farinha, a manteiga e o açúcar. Quando havia terminado, uma enorme mão saiu da terra e fez-se ouvir uma voz:

- Quem é o atrevido?

O rapaz golpeou a mão com sua colher e respondeu:

- Eu que vim celebrar minha festa com os mortos. Volte para onde está teu pé. Agora desapareça!

Ao ouvir esta ofensa, a mão desapareceu e o rapaz, que terminara sua mistura, voltou para perto dos ladrões.

- Então, conheceste o medo? – Perguntaram os ladrões entre risadas.

- Não. Houve apenas uma mão que saiu da terra, pelo visto queria provar a minha sopa; mas levou uma colherada e voltou para o lugar de onde veio.

Os ladrões ficaram assombrados e um deles disse:

- Não muito longe daqui há um casarão abandonado; ali, sem dúvida sentirás medo.

O jovem foi até a casa e entrou; encontrou-se então em um enorme salão completamente vazio e viu, pendurado no teto, um cesto em que havia uma criança chorando. De repente surgiu da escuridão uma jovem, dando voltas nervosamente e olhando com desespero para o cesto pendurado. A donzela aproximou-se do jovem e disse:

- Levanta-me nos seus ombros. A criança está chorando e eu quero niná-lo, mas o cesto está tão alto que assim não o alcançarei.

Ele concordou e a moça se sentou sobre seus ombros. Enquanto balançava a criança, a jovem apertava com os joelhos o pescoço do rapaz. Ele sentiu que ia morrer estrangulado, então deu um salto e a mulher desapareceu, deixando cair no chão um bracelete. O jovem pegou-o e se afastou da casa.

Ao atravessar a rua, um velho judeu que viu o bracelete aproximou-se dele dizendo:

- Este bracelete é meu.

- Não, não é. O bracelete pertence a mim.

O judeu insistiu:

- Ele é minha propriedade.

- Pois vamos até o juiz. Se ele disser que é seu lhe darei. Senão ficarei com ele.

Quando expuseram o caso ao juiz, este setenciou:

- O bracelete será daquele que prove ser seu dono.

Nenhum dos dois pôde fazê-lo, e o juiz guardou a jóia até que comprovassem a quem pertencia.

O rapaz não se esquecera de que havia saído em busca do medo, e que nada do que havia acontecido o fizera senti-lo. Depois de muito caminhar, chegou a uma praia onde viu um barco que naufragava, e gritou:

- Vocês tem medo de se afogar?

E uma voz lhe respondeu:

- Claro que temos medo, como não iriamos ter medo, se estamos a ponto de morrer?

Rapidamente, ele tirou suas roupas e, atirando-se ao mar, nadou até chegar a embarcação.

Outra voz lhe disse:

- Estamos naufragando, como podes perguntar se temos medo?

O jovem amarrou um cabo na cintura e descendeu até às profundezas do oceano. Ali descobriu que a filha do mar estava puxando o barco. Amarrou-a com o cabo e trouxe-a para fora d’água. Chegando à superfície, perguntou-lhe em tom desafiante:

- É isto o medo?

E soltou-a,virando as costas e afastando-se de novo em busca do medo.

Caminhou pela costa e descobriu um grande jardim em frente ao qual havia uma fonte. Três pombos que saltitavam ao seu redor submergiram n’água e ao voltar a sair se converteram em três donzelas que traziam uma mesa com taças para beber. Quando uma delas se dispôs a brindar, as outras duas lhe perguntaram:

- À saúde de quem bebes?

Ela respondeu:

- Bebo a saúde daquele que celebrou sua festa entre os defuntos e não desmaiou quando saiu uma mão da terra.

Quando a segunda ia beber, as outras perguntaram o mesmo, e ela respondeu:

- À saúde daquele que não teve  medo de morrer estrangulado.

Por último, a terceira levantou sua taça e respondeu à pergunta das outras:

- No mar naufragava um barco; um jovem aprisionou a donzela que era culpada e não tremeu. À sua saúde bebo.

O rapaz resolveu falar:

- Eu sou esse jovem.

As donzelas o abraçaram e ele continuou:

- O juiz conserva o bracelete que caiu do braço de uma de vocês. Um velho judeu quis tirá-lo de mim, mas não permiti.

As jovens pegaram sua mão e desceram com ele a uma cova onde havia vários pátios, e em cada pátio uma infinidade de jóias dentro de caixas. Uma das donzelas disse:

- Tome este outro bracelete. Como é igual ao que está com o juiz, podes comprovar que os dois são teus.

Assim fez o rapaz e voltou com os dois braceletes à caverna.

- Não saias nunca do nosso lado! – disseram as donzelas.

- Sinto muito, mas não posso ficar enquanto não saiba o que é o medo.

E despedindo-se delas, seguiu seu caminho.

Logo chegou a um lugar onde se aglomerava uma multidão.

- O que está acontecendo? – perguntou o jovem.

Responderam-lhe que como havia morrido o rei daquele país, iam escolher um sucessor. Para a eleição, soltariam uma pomba que pousaria sobre a cabeça daquele designado pelos céus.

E quando soltaram a pomba, esta foi pousar na cabeça do jovem que não conhecia o medo. Como ele não se considerava digno de aceitar tal honra, soltaram uma nova pomba que, como na vez anterior, pousou na cabeça do jovem. Então o povo começou a gritar: “Você é nosso rei!”.

- Mas se estou em busca do medo! Não posso ser rei! – dizia enquanto era arrastado pela multidão para o palácio.

Finalmente, da janela da sala do trono disse a multidão:

- Aceito ser rei por esta noite, mas amanhã partirei em busca do medo.

Atravessando os aposentos do palácio, chegou a uma sala onde viu alguns homens construindo uma caixão e esquentando água.

Quando terminaram seu trabalho, ele resolveu que dormiria naquele aposento. Encostou o caixão na parede, apagou o fogo com água e começou a dormir.

Quando, de manhã, os homens entraram esperando encontrar o novo rei morto e viram que gozava de perfeita saúde, foram contá-lo a sua sultana, que lhes disse:

- Quando chegar a noite e estiver jantando comigo, coloquem um pardal vivo dentro da sopeira.

Enquanto jantavam, a sultana disse ao rei:

- Levante a tampa da sopeira.

- Não, porque não quero sopa – respondeu.

- Mas eu quero, faça-me este favor.

Tão logo o jovem levantou a tampa, o pássaro saiu voando. Foi tão inesperado o incidente que o rapaz sentiu um fugaz calafrio.

-Viu isto que você acaba de sentir? – disse a sultana. – Pois isso é o medo.

- É só isso? – Perguntou o jovem.

- Você agora já tremeu uma vez, que era o que buscava conseguir; o tremor será maior ou menor, mas já poderá conhecê-lo se voltar a senti-lo – respondeu ela.

Durante quarenta dias, celebrou-se o casamento entre a sultana e o jovem, e este governou com justiça durante muitos anos.

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