19 agosto 2019

A Casa de Hospedes

O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.
A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.
Receba e entretenha a todos
Mesmo que seja uma multidão de dores
Que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.
O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.
Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.


Rumi (Mestre sufi do sec. XII)

17 setembro 2018

Os artistas chineses e gregos


Os chineses e os gregos discutiam diante do Sultão qual deles era o povo que melhor manifestava o Dom da pintura, e, para decidir a disputa, o Sultão destinou uma casa para cada um fazer seu trabalho.

Os chineses compraram todo tipo de tintas e coloriram sua casa do modo mais elaborado possível. Os gregos, por seu lado, não usaram nenhuma cor, mas contentaram-se em limpar as paredes de sua casa de toda a sujeira e a lustrá-las até que estivessem muito limpas e brilhantes.

Quando as duas casas foram oferecidas para a inspeção do Sultão, a que fora pintada pelos chineses foi muito admirada e elogiada, mas a casa grega ganhou prêmio, pois todas as cores da casa chinesa refletiam-se nas suas paredes e apareciam nesta, com infindável variedade de cores e matizes.

Como o mal gera o mal


Um eremita caminhava por um lugar deserto quando chegou a uma gruta enorme cuja entrada não era facilmente visível. Decidiu descansar e entrou. Logo notou o brilhante reflexo da luz sobre um monte de ouro.
          Assim que se deu conta do que tinha visto, o eremita começou a correr, fugindo o mais depressa que pôde.
          Aconteceu que havia três ladrões que passavam muito tempo naquele ponto do deserto com a intenção de roubar viajantes. Logo o homem piedoso passou por eles. Os ladrões se surpreenderam, alarmando-se até, vendo o homem correndo sem que ninguém o perseguisse. Sairam do seu esconderijo e detiveram-no, perguntando-lhe o que estava acontecendo.
          - Estou fugindo do diabo, irmãos – disse. – Ele está me perseguindo.
          Os bandidos não conseguiam ver ninguém perseguindo o devoto.
          - Mostra-nos quem está atrás de ti – disseram.
          - Eu o farei – falou o eremita, com medo deles.
          Levou-os em direção a gruta, rogando-lhes que não se aproximassem dela. A essa altura, naturalmente, os ladrões estavam muito curiosos com a advertência e insistiram em ver o motivo de tanto alarme.
          - Aqui está a morte que me perseguia – disse o ermitão.
          Os malfeitores, é claro, ficaram encantados. Evidentemente consideraram o eremita meio louco e o deixaram ir, enquanto se felicitavam por sua boa sorte.
          Em seguida começaram a discutir sobre o que deveriam fazer com sua presa, pois tinham receio de deixar o tesouro novamente só. Decidiram por fim que um deles apanharia um pouco de ouro, iria à cidade, onde o trocaria por comida e outras coisas necessárias, e depois procederiam à divisão.
          Um dos ladrões se apresentou voluntariamente para realizar a missão. Pensou consigo mesmo:
          ‘Quando chegar à cidade poderei comer tudo o que quiser.
Depois envenenarei o resto da comida. Assim os outros dois morrerão, e o tesouro será só meu’.
          Na sua ausência, porém, os outros dois também tinham estado pensando.
          Tinham decidido que, mal o espertalhão regressasse, o matariam. Depois comeriam sua comida e dividiriam o tesouro em duas partes, em vez de três.
          No momento em que o pilantra chegou à gruta com as provisões, os outros dois caíram sobre ele e, a punhaladas, o mataram. A seguir comeram toda a comida, e morreram por causa do veneno que seu companheiro havia posto nela.
          Dessa maneira, como o eremita predissera, o ouro realmente tinha significado a morte para os que tinham deixado se influenciar por ele, e o tesouro permaneceu onde estava, na gruta, por muito tempo.

15 agosto 2017

A Historia de Yunus Emré

Yunus Emré, em tempos muito antigos, inventou contos mais duráveis que a memória de sua própria vida. Foi também um incansável buscador da verdade. Aos vinte anos aproximadamente, ou talvez mais jovem ainda, veio-lhe ao coração uma avidez pelo conhecimento que o levou pelos caminhos do mundo. Ele partiu na esperança que essa sede de saber o conduzisse a um mestre que o iluminasse. Esse mestre foi-lhe dado encontrar depois de dez anos de errância miserável, no grande vento de uma colina, em plena estepe da Anatólia.. Chamava-se Taptuk e era cego.
     Taptuk também havia viajado muito, mas por caminhos diferentes dos de Yunus. Adolescente ainda, raspou sua cabeça e sobrancelhas e vestindo um gorro de feltro vermelho foi combater invasores mongóis. Atravessou tantas derrotas quantas efêmeras vitórias. Cavalgou com o sabre entre os dentes, perseguindo homens tão loucos quanto ele.
     Odiou, pilhou, matou, cem vezes perdeu e encontrou sua alma no furor dos combates, até que finalmente o silencio se abateu sobre sua cabeça. Numa noite de derrota, ele foi deixado como morto num campo de batalha, à beira de um riacho. Lá, uma mulher, a primeira de sua existência com exceção de algumas prostitutas de tavernas, finalmente debruçou-se sobre ele. Ela o recolheu, cuidou dele até curá-lo. Só não pode devolver-lhe a visão que lhe tinha sido tomada por um sabre inimigo. Ela então lhe ofereceu sua vida, sua mão para conduzi-lo. Desse dia em diante, guiado por sua esposa, Taptuk não sonhava outra coisa a não ser encontrar ele mesmo um caminho até a fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.
     Uma noite, nesse deserto seco onde ninguém se aventurava, com exceção de alguns pastores, ele alcançou a fonte. Lá, construiu sua casa. Outros buscadores juntaram-se a ele, de tempos em tempos, levados por não se sabe que vento da alma. Eles reconheceram nesse homem imponente e de poucas palavras o mestre que eles esperavam. Construíram suas cabanas perto da sua e em volta levantaram uma paliçada.
     Quando Yunus Emré chegou a esse lugar, o monastério de Taptuk, o cego, não era mais do que isso: algumas choupanas baixas rodeadas por um muro de pedras secas na estepe infinita. Taptuk, assim que apalpou o rosto e os ombros deste andarilho faminto de saber, prometeu-lhe a verdade.
     - Ela chegará aos poucos, disse-lhe. Por enquanto seu trabalho será varrer sete vezes por dia o pátio do monastério. Yunus obedeceu de coração. No instante mesmo em que se viu diante desse ancião de cabeça raspada, uma confiança inquebrantável apoderou-se dele. Sete vezes por dia ele varria o pátio com entusiasmo, saudando alegremente o mestre e seus discípulos, quando eles se reuniam na casa da esposa onde Taptuk, o cego, ensinava todas as manhãs. Mas ninguém respondia às suas saudações. "Está bem que os discípulos me ignorem, dizia-se, mas aquele que  tão bem me acolheu em sua casa, por que não me dirige a palavra?"
     Assim se passou um ano, depois dois e três anos, sem que ninguém falasse com ele. Então, seu coração tornou-se pesado. "Sem duvida este silencio significa alguma coisa, pensou, seguramente meu mestre quer ensinar algo para minha alma, pois é à alma que se dirige a palavra sem voz.
     "Refletiu sobre sua solidão, enxotando sete vezes por dia o pó que o vento trazia sem cessar para o pátio do monastério. Enfim, numa manhã de primavera, ao sair de sua cabana, a vassoura nos ombros, uma luz lhe veio. ”Descobri! Taptuk quer ensinar-me a paciência", se disse ele. Seu coração encheu-se de júbilo e ele voltou a varrer o pátio com um ardor renovado.
     Cinco anos se passaram. Dois outros se escoaram ainda, depois três, depois cinco novos anos, sem que sua sorte mudasse. Então Yunus desesperou-se. "Que fiz eu para merecer tão longa indiferença?” se disse ele. Talvez meu mestre tenha me esquecido. Ou talvez não seja eu para ele senão um idiota recolhido por piedade, bom apenas para varrer o pátio. Esforçou-se, no entanto, para refletir desapaixonadamente. Numa noite de tempestade, veio-lhe ao espírito que Taptuk quisesse lhe ensinar a humildade. Em meio à escuridão atormentada em que se encontrava, ele sorriu. "É isso. Ele quer me ensinar a humildade". Na manhã seguinte, quando iniciou o trabalho, seus gestos estavam mais comedidos e, porque seu coração estava em paz, ele se pôs, enquanto varria o pátio, a cantarolar. Pouca coisa. Palavras que lhe subiam aos lábios e que ele deixava ir ao vento pela única satisfação de ouvir voz humana. Entretanto, sua confiança em Taptuk pouco a pouco o deixou. Este homem, decididamente, o enganara. Ele não tivera jamais a intenção de ensinar-lhe o que havia prometido. "Perco minha vida a esperar", se disse ele.
     Cinco anos ainda, varreu o pátio, sem que ninguém o escutasse. Uma noite, cansado dessa miserável existência e convencido de que ninguém se aperceberia de sua ausência, decidiu deixar aquele lugar onde, depois de quinze anos de humilde paciência, não havia encontrado senão amargura e melancolia.
     Ele se foi pela noite, caminhando sempre em frente. Andou até o amanhecer, embriagado de liberdade sem esperança. Sentiu fome e sede mas não havia nenhuma fonte onde saciar-se, nenhum abrigo onde pudesse refazer as forças neste infinito deserto de ervas amarelecidas, pedras e vento.
"Vou morrer, se disse. Que importa? Mais vale morrer caminhando do que varrendo o pátio de um louco". Andou, por três dias inteiros. Na noite do terceiro dia, no momento em que ia deitar-se sobre um rochedo para oferecer seu corpo extenuado aos abutres, percebeu ao longe um acampamento. Surpreendeu-se. Nenhum viajante viria a essas terras. Quem poderiam ser essas pessoas? Aproximou-se. Viu homens sentados na entrada de uma grande tenda. Festejavam rindo e falando alto. Quando o viram, fizeram sinal e, gritando alegremente , convidaram-no a compartilhar sua refeição. Frutas deliciosa, assados apetitosos, bebidas de todas as cores em frascos de vidro estendiam-se  em profusão sobre um tapete de lã. Yunus acercou-se deles, bebeu, comeu, e finalmente ousou perguntar a essas pessoas por qual milagre, neste deserto hostil, eles se achavam assim providos de alimentos tão raros, como ele jamais havia experimentado.
    Uma voz conduziu-nos aqui, disseram-lhe. Com certeza é o melhor lugar do mundo. Todos os dias o vento nos traz de longe os cantos de um dervixe desconhecido. Basta escutá-los e cantá-los que logo aparecem diante de nós todas essas iguarias suculentas que você vê. seríamos loucos, se fossemos viver noutro lugar.
      Yunus extasiou-se, confessou que jamais conhecera magia igual e atreveu-se a perguntar a seus companheiros se eles poderiam ensinar-lhe tais cantos para que ele não morresse de fome pelo caminho.
     - Com prazer, responderam os homens. E se puseram a cantar. Então Yunys, com os olhos arregalados e a boca aberta, ouviu os cantos que ele mesmo inventara durante cinco anos, varrendo o pátio do monastério. Reconheceu as mesmas palavras que pronunciara com o único desejo de enganar a solidão. Músicas nascidas do seu coração, na esperança de espantar a melancolia. Eram a sua obra. No mesmo instante ele compreendeu para qual trabalho ele estava neste mundo, experimentou a pura verdade de sua alma e sofreu a pior vergonha pensando em Taptuk que o havia instruído, sem que ele percebesse, como a um filho infinitamente amado. Então abraçou e beijou os homens que o haviam acolhido e voltou ao monastério correndo e chorando. "Taptuk me perdoará por eu ter duvidado dele? Se dizia ele, bebendo o vento. Algum dia ele me perdoará?"
     Já era noite quando chegou à porta carcomida que fechava a paliçada. Bateu chamando e pedindo piedade. O rosto de esposa  de Taptuk apareceu em cima do muro.
     -Eis que está de volta, Yunus, disse ela docemente."Pobre criança! Não sei se Taptuk o aceitará de novo entre nós. Sua partida o desesperou.'"Que desgraça, disse-me ele, meu filho mais querido deixou-me. Que vale a minha vida daqui para frente ?" Vou abrir. Você vai dormir na poeira do pátio. Amanhã, quando seu mestre fizer o passeio matinal, vai bater o pé no seu corpo. Se ele disser: "Quem é este homem?", então, você deverá partir para sempre. Mas se disser: "É você, meu bom Yunus?" então saberá que pode outra vez viver em sua presença. Entre, meu filho.
     Yunus deitou-se na poeira do chão. Ao amanhecer viu aproximar-se Taptuk, o cego, com sua esposa. Fechou os olhos, sentiu um pé contra suas costas e ouviu:
     - É você, meu bom Yunus?
     Ele se levantou inebriado de luz e de felicidade, correu para sua vassoura e começou novamente a varrer o pátio.
     Assim ele fez até sua morte, sem falhar um único dia, quando se tornou semelhante ao pó mil vezes levado pelo vento, seus cantos se elevaram, invadiram os lugares onde viviam os homens e os nutriam com uma bondade tão perseverante que ainda hoje, nove cidades na Anatólia reivindicam o privilégio de ter em seu território o verdadeiro túmulo de Yunus Emré, o homem que Taptuk, o cego, iluminou.


14 abril 2015

O Rei que resolveu ser generoso

Certa vez, um rei do Irã ordenou a um dervixe: “Conte-me uma história.”O dervixe disse: “Majestade, eu lhe contarei a história de Hatim Tai, o rei árabe e o homem mais generoso de todos os tempos, pois, se pudesse ser como ele, seria, realmente, o maior rei vivo. 
“Prossiga”, disse o rei. “Mas, se sua história não me agradar, tendo lançado dúvidas quanto à minha generosidade, perderá sua cabeça”. O rei falou assim porque na Pérsia era costume que todos na corte dissessem ao monarca que ele tinha qualidades mais admiráveis do que qualquer pessoa no mundo – do passado, do presente ou do futuro.
“Continuando”, disse o dervixe à maneira dos dervixes (pois eles não ficam facilmente desconcertados), “a generosidade de Hatim Tai superava, na ação e no espírito, a de todos os outros homens.” E esta é a história que o dervixe contou:
Um outro rei árabe cobiçava as posses, as aldeias, os oásis, os camelos e os guerreiros de Hatim Tai. Esse homem declarou guerra a ele, enviando um mensageiro com a seguinte declaração de guerra: “Renda-se a mim ou, do contrário, atacarei você e suas terras, e me apossarei da sua soberania.” 
Quando essa mensagem chegou à corte de Hatim Tai, seus conselheiros imediatamente lhe sugeriram que mobilizasse os guerreiros em defesa do seu reino, afirmando: “Certamente, não há um só homem ou uma só mulher fisicamente aptos, entre seus súditos, que não sacrificariam com alegria sua vida em defesa do nosso amado rei.”
Mas Hatim, contrariando as expectativas do povo, declarou: 
“Não, em vez de cavalgarem até eles e derramarem seu sangue por mim, eu fugirei. Se me tornasse a causa do sacrifício da vida de um só homem ou de uma só mulher, estaria longe do caminho da generosidade. Se vocês se renderem pacificamente, esse rei se contentará em aceitar seus serviços e tributos, e assim não sofrerão danos materiais. Se, ao contrário, resistirem, ele terá direito, segundo as convenções de guerra, de considerar suas posses como despojos, e, se perderem a guerra, ficarão sem um centavo. “ 
Assim dizendo, Hatim pegou apenas um bastão firme e rumou para as montanhas próximas, onde encontrou uma gruta e mergulhou em contemplação.
Metade da população ficou profundamente tocada com o fato de Hatim Tai sacrificar sua posição e suas riquezas em favor deles. Mas outros, especialmente aqueles que queriam se destacar como corajosos, murmuraram: “Como vamos saber se este homem não é simplesmente um covarde?” E outros, que tinham pouca coragem, criticaram Hatim, dizendo: “De certo modo, ele salvou a si mesmo, pois nos abandonou a um destino que desconhecemos. Talvez nos tornemos escravos desse rei desconhecido, que é, afinal de contas, tirano o suficiente para declarar guerra a seus vizinhos. “
Alguns outros, sem saber no que acreditar, permaneceram em silêncio, até que pudessem ter meios para formar uma opinião.
E foi assim que o rei tirano, acompanhado por seu impressionante exército, tomou posse do reino de Hatim Tai. Ele não aumentou os impostos, não tomou para si mais do que Hatim recebia do povo em troca de ser seu protetor e administrador da justiça. No entanto algo o perturbava. Tinha ouvido boatos de que, embora tivesse se apoderado de um novo reino, ele lhe havia sido cedido por um ato de generosidade de Hatim Tai. Essas eram as palavras pronunciadas por algumas pessoas do povo.
“Não poderei ser o verdadeiro senhor dessas terras”, declarou o tirano, “enquanto não capturar Hatim Tai. Enquanto viver, haverá lealdade a ele no coração de muitas dessas pessoas. Isso significa que não são meus súditos completamente, mesmo que, aparentemente, se comportem como tal.”
Assim, publicou um edital anunciando que qualquer pessoa que trouxesse Hatim Tai à corte seria recompensada com cinco mil moedas de ouro. Hatim Tai não sabia nada sobre isso, até que um dia, sentado do lado de fora de sua gruta, ouviu uma conversa entre um lenhador e sua esposa.
O lenhador disse: “Querida esposa, estou velho e você é muito mais jovem do que eu. Temos filhos pequenos e, na ordem natural dos acontecimentos, é provável que eu morra antes de você e enquanto as crianças ainda são muito jovens. Se ao menos conseguíssemos encontrar e capturar Hatim Tai, por quem o novo rei oferece cinco mil moedas de ouro, o futuro de vocês estaria garantido.
“Você deveria se envergonhar do que diz!”, respondeu a mulher. “Seria preferível você morrer e nossos filhos passarem fome a termos nossas mãos manchadas com o sangue do homem mais generoso que já existiu e que sacrificou tudo por nós.”
“O que você diz está correto”, argumentou o velho lenhador, ”mas um homem tem que pensar nos seus próprios interesses. Afinal de contas, tenho responsabilidades. E, seja como for, a cada dia, mais e mais pessoas acreditam que Hatim Tai é um covarde. Será apenas uma questão de tempo até que tenham vasculhado cada possível esconderijo à procura dele.”
“A crença na covardia de Hatim é estimulada pelo amor ao ouro. Mais conversas desse tipo, e Hatim terá vivido em vão”, replicou a mulher.
Nesse momento Hatim se levantou e se revelou ao casal atônito: “Eu sou Hatim Tai. Levem-me ao novo rei e reclamem sua recompensa.”
O velho homem ficou envergonhado e seus olhos se encheram de lágrimas. “Não, grande Hatim”, disse , “não posso fazer isso.”
Enquanto discutiam, algumas pessoas, que estiveram à procura do rei fugitivo, agruparam-se em torno deles.
“Se não o fizer”, disse Hatim,”vou me entregar ao rei e dizer que você me escondia aqui. Nesse caso, será executado por traição.
Percebendo que se tratava de Hatim, a corja avançou, prendeu seu antigo rei e o conduziu até o tirano, seguidos pelo desolado lenhador.
Quando chegaram à corte, cada um reivindicou ter capturado Hatim pessoalmente. O antigo rei, vendo o ar indeciso do seu sucessor, pediu permissão para falar: “Saiba, ó rei, que meu testemunho deve também ser ouvido. Fui capturado por este velho lenhador, e não por aquela corja ali. Dê a ele, portanto, sua recompensa e faça comigo o que desejar...”
Nesse momento, o lenhador deu um passo à frente e contou ao rei a verdade sobre Hatim Tai ter se oferecido em sacrifício pela segurança futura da sua família. 
O novo rei ficou tão impressionado com essa história que ordenou a retirada do seu exército, restituiu o trono a Hatim Tai e voltou para seu lugar de origem.
Depois de ouvir essa história, o rei do Irã, esquecendo-se da ameaça que fizera ao dervixe, disse: “Um conto excelente, ó dervixe, do qual podemos nos beneficiar. Você, de qualquer modo, não pode tirar nenhum proveito, tendo abandonado as expectativas desta vida e nada possuindo. Mas eu, eu sou um rei. E sou rico. Os reis árabes, pessoas que vivem de lagartos cozidos, não podem se equiparar a um rei persa quando se trata de generosidade verdadeira. Uma ideia me ocorreu! Ao trabalho!”
Levando o dervixe consigo, o rei do Irã convocou seus maiores arquitetos e os reuniu num grande espaço aberto, ordenando-lhes que desenhassem e construíssem ali um imenso palácio. Ele deveria ser composto de um cofre central e quarenta janelas.
Quando ficou pronto, o rei reuniu todos os meios de transporte disponíveis para abarrotar o palácio com moedas de ouro. Após muitos meses dessa atividade, uma proclamação foi expedida:
“Viva! O Rei dos Reis, Fonte da Generosidade, ordenou que um palácio com quarenta janelas fosse construído. Todos os dias, por essas janelas, ele distribuirá pessoalmente ouro para todas as pessoas necessitadas.”
Como era de se esperar, multidões de necessitados se reuniram, e o rei entregou uma moeda de ouro para cada um, aparecendo todos os dias numa janela diferente. Então, ele notou que havia um certo dervixe que, diariamente, se apresentava diante da janela, pegava sua moeda de ouro e ia embora. No início, o rei pensou: “Talvez ele queira levar o ouro para alguém necessitado.” Depois, quando viu o homem de novo, pensou: “Talvez esteja aplicando a regra dervixe da caridade secreta e redistribuindo o ouro.” E, a cada dia, quando via o dervixe, o desculpava mentalmente; até o quadragésimo dia, quando descobriu que sua paciência tinha chegado ao fim. Segurando a mão do dervixe, o rei disparou: “Verme ingrato! Você não diz obrigado nem demonstra qualquer apreço por mim. Não sorri, não se curva, e volta dia após dia. Por quanto tempo vai proceder assim? Está economizando à custa da minha generosidade para se tornar rico? Ou está emprestando o ouro a juros? Seu comportamento está realmente muito distante do comportamento daqueles que sustentam a honorável insígnia do manto de retalhos.”
Assim que estas palavras foram pronunciadas, o dervixe atirou ao chão as quarenta moedas de ouro que havia recebido e disse ao rei: “Saiba, ó rei do Irã, que a generosidade não pode existir sem que três coisas a precedam. A primeira é dar sem o sentimento de generosidade, a segunda é a paciência, e a terceira é não ter suspeitas.”
Mas o rei nunca aprendeu. Para ele, a generosidade estava atrelada ao que as pessoas pensariam dele e a como se sentia sendo “generoso”. 
Esta história tradicional, conhecida pelos leitores principalmente por meio do clássico urdu A História dos Quatro Dervixes, ilustra sucintamente importantes ensinamentos sufis.
A imitação sem as qualidades básicas que sustentem essa imitação é inútil. A generosidade não pode ser exercitada a menos que outras virtudes também sejam desenvolvidas.
Algumas pessoas não podem aprender mesmo quando expostas a ensinamentos, representados neste conto pelo primeiro e pelo segundo dervixes.

18 março 2015

O ídolo que não respondia

Era uma vez um homem que  se entregou a adoração de um ídolo. Durante vários anos, as coisas correram bem, mas um dia ele não pode resolver os problemas. Ele rolou na poeira do chão o tempo diante do ídolo, gemendo:

- Ajude-me, ídolo! Estou prestes a morrer. Oh, tem piedade de mim!

Ela orou e orou desta forma por muito tempo. Mas ele não obteve qualquer resposta.

- Oh, ídolo! Eu tinha que ser acorrentado ao erro por todos esses anos que eu o adorava! Ajuda-me agora, nestes tempos de calamidade ou voltarei para o Todo-Poderoso e pedirei a Ele para ajudar-me.

Mas ele continuou sem qualquer resposta.

Ele deixou o templo e, antes que ele pudesse limpar a poeira, o Todo-Poderoso fez seus desejos fossem cumpridos.

No entanto, um homem sábio, que tinha visto todos esses fatos, foi surpreendido.

"Como é possível que Deus, perguntou-se a si, conceda a um adorador de ídolos vulgar, falsas e sem fé, seus pedidos?", E ele não conseguia entender até que o Todo-Poderoso enviou uma mensagem ao seu coração:

"É verdade que o estúpido homem velho passou anos adorar um ídolo. Ele pediu ajuda e sua oração foi rejeitada. Mas se eu me recusasse também, que diferença haveria entre o ídolo e eu? ".

Saadi

06 março 2015

O vendedor de contas

Era uma vez um vendedor de contas que tinha uma linda mulher chamada Kubra. Numa sexta feira, Mahbub, pois este era o seu nome, estava vendendo sua mercadoria na praça em frente ao palácio quando o sultão chegou à janela e viu Kubra ao lado de seu marido. O véu esvoaçado deixava seu rosto à mostra, e os colares de contas pendentes de seus braços.
- Por minha fé! – exclamou o sultão. – Essa criatura tem as feições mais belas que já vi. Não existe outra igual a ela em todo o meu palácio. Quero me casar com ela.
E assim dizendo mandou chamar seu grão-vizir.
- Vizir - disse ele, - traga-me a mulher do vendedor de contas. Eu a quero aqui em meu palácio, e seu marido deve morrer.
- Que possa viver eternamente, ó sultão! – disse o vizir.
- Certamente arranjaremos um modo de nos livrarmos do vendedor de contas, mas não devemos matá-lo. O povo se insurgirá contra o senhor, e Vossa Majestade poderá ter que fugir. Por isso, se Vossa Majestade quiser me ouvir, posso sugerir um plano.
- Claro, vizir. Fale logo, sem omitir nenhum detalhe – disse o sultão.
- Soberano do Mundo – entoou o vizir. – Permite que o  vendedor de contas seja intimado a fazer uma cortina larga e cumprida o suficiente para ser pendurada atrás do trono. Caso ele se recuse a fazê-lo, nós lhe diremos que se não aprontá-la em sete dias pagará com sua própria vida. Ele certamente recusará, pois como poderia um simples vendedor de contas fabricar uma cortina para o palácio do sultão? Dessa forma ele será obrigado a fugir do país, e então poderemos trazer sua esposa para sua Majestade em perfeita segurança.
- Excelente! – riu o sultão. – Ponha imediatamente o plano em andamento.
Assim, enquanto Mahbub estava anunciando:
- Contas! Contas! Comprem minhas contas de Bokhara, contas de Damasco...
O grão-vizir se aproximou e tocou de leve o vendedor de contas com sua bengala de ouro.
Enquanto Mahbub e sua esposa se ajoelhavam diante do dignatório da corte, aterrorizados pela proximidade de tal magnificência, o vizir disse:
- Venha comigo ao palácio imediatamente. O sultão incumbiu-me de designar-lhe uma tarefa que ele gostaria que você executasse.
- Eu? Executar uma tarefa para o sultão?! – exclamou Mahbub. – Mas como eu poderia fazer alguma coisa por Sua Majestade, o sultão?
- Deixe suas contas aí e siga-me – disse o dignitário da corte.
E Mahbub, entregando todas as contas para sua mulher, acompanhou o vizir.
No palácio o vizir levou o vendedor de contas até a sala do trono e mostrou-lhe a janela de treliças de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura que ficava atrás do trono.
- Sua Majestade, Fonte de Sabedoria e Manancial do Conhecimento, decretou que você deve providenciar uma cortina para essa treliça atrás do trono – disse o vizir solenemente.
- Que Allah seja meu juiz – soluçou Mahbub. – Eu não sei tecer nem fiar, sou apenas um humilde vendedor de contas.
Como vou fazer tal coisa para Sua Auspiciosa Majestade?
- você tem sete dias para fazê-lo – disse o vizir. - Se ao final desse prazo não a tiver trazido para o palácio você deverá morrer.
E ele dispensou Mahbub com um aceno de mão.
Quando Mahbub voltou para o seu ponto de venda, sua mulher lhe perguntou:
- O que é que o sultão quer que você faça?
- Ele quer que eu lhe forneça uma cortina de muitos metros de comprimento e outros tantos de largura, mas nunca serei capaz de fazê-la em sete dias – disse Mahbub. – Assim sendo, deverei fugir para salvar minha vida ou serei executado.
Não tenha medo, marido – disse Kubra. – Eu lhe direi o que fazer.
E continuou, explicando que ela na verdade era irmã de uma djin, uma mulher-gênio que morava num poço.
- Vá até o poço perto do portão em ruínas – continuou – e grite para dentro dele: ´Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles`.
 Mahbub foi tão rápido quanto suas pernas permitam em direção ao portão em ruínas e falou as profundezas do poço:
- Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles.
Tão logo as palavras saíram de sua boca os objetos mencionados na beira do poço. Ele os pegou e os levou para sua mulher. Ela se trancou num quarto, e durante toda a noite ele a ouviu fiando e tecendo. Quando o primeiro galo cantou pela manha ela saiu do quarto, exausta, e ficou o dia todo dormindo. Assim, todos os dias, durante seis dias, ela dormia, e todas as noites, ele ouvia o som da roca e do tear. No último dia, quando os galos cantavam anunciando o amanhecer, Kubra saiu do quarto com uma cortina de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura em seus braços, feita do mais lindo tecido azul-escuro, brilhante como o céu noturno, com mil estrelas. Mahbub a olhou com assombro e alegria.
- Ora mulher! – disse. – Que maravilha é essa? Essa cortina é digna das janelas de qualquer palácio. Que bênçãos recaiam sobre você, minha vida está salva.
Quando o Sol estava alto, Mahbub, vestindo suas melhores roupas, tomou o rumo do palácio e pediu para ser admitido à presença do sultão.
Ao ver o maravilhoso tecido, o vizir ficou verdadeiramente surpreso, e fez com que os servos reais pendurassem imediatamente a fabulosa cortina atrás do trono. Mahbub voltou para casa com uma bolsa cheia de ouro que o sultão lhe deu assim que viu a delicada textura daquele pano.
- E agora, o que faremos? – disse o sultão. – O vendedor de contas foi mais esperto do que nós. Não posso mais executá-lo, contudo não consigo esquecer a linda esposa desse miserável homem.
- Posso Vossa Majestade viver para sempre! – disse o vizir. – Lembrei-me de uma coisa que ele nunca poderá fazer.
Para tanto, dê-me mais uma semana e executaria meu plano.
No dia seguinte o vendedor de contas e sua mulher estavam mais uma vez mostrando suas mercadorias para os passantes quando, de novo, o grão-vizir se aproximou.
- Ó vendedor de contas, Sua Magnificente Majestade pediu-me para dize-lhe que se você não conseguir, em uma semana, uma criança de sete dias de idade capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência sua vida estará perdida.
E assim dizendo, virou-se e partiu.
Dessa vez o vendedor de contas entrou em desespero.
- Mulher, mulher – gritou quase em lágrimas. – O sultão encarregou-me de uma tarefa impossível. Como posso encontrar em uma semana uma criança de sete dias de idade que seja capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência? É uma sentença de morte, portanto esta noite devo fugir para salvar minha vida; e nunca mais verei você.
 - Ouça, marido – disse Kubra. – Lembre-se que minha irmã é uma djin. Ela não nos ajudou antes? Fique em paz, e daqui a sete dias vá mais uma vez ao poço.
- O que devo fazer? – perguntou ele.
- Vá como antes ao mesmo poço e diga: ‘ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda! Envie seu filho de sete dias de idade, pois necessitamos dele por uma noite’.
Quase não conseguindo acreditar em sua mulher, o vendedor de contas encheu-se de paciência aguardando o término da semana, e então foi até o poço. Depois de falar o que sua esposa lhe havia ensinado, ele ouviu uma voz dizendo:
- Puxe o balde.
Assim ele fez, e para seu espanto viu que dentro dele havia um bebê envolto em fraldas. Mahbub levou-o para casa e disse à sua mulher:
- Aqui está a criança. O que devo fazer agora?
- Leve-a até a câmara de audiência – disse ela. – Pois o sultão e todos os cortesãos estão lá, e hoje é o sétimo dia.
Então Kubra falou o nome de Allah no ouvido da criança, e Mahbub partiu para o palácio.
Todos os cortesãos lhe deram passagem quando lá chegou.
O sultão, sentado em seu trono, observava com grande interesse enquanto colocavam o bebê numa almofada à sua frente.
- Como? Esse bebê pode falar? Ele tem sete dias de idade? – perguntou o vizir.
- Sim, Majestade – respondeu Mahbub. – Ele contará uma história ao Sultão Imperial logo que houver silencio.
Não se ouvia um único som na ampla câmara de audiências durante todo o tempo em que o bebê se esforçava para sentar-se. Logo, ele abriu a boca como se fosse falar.
- Bobagem! – disse o sultão. – Ele é muito pequeno, não será capaz de me contar nenhuma história. Ele não pode nem mesmo chorar.
Nesse momento a criança conseguiu sentar-se ereta na almofada, e dirigiu-se ao sultão.
- Ó Auspicioso Sultão, Fonte de Conhecimento! Posso falar?
O governante estava tão espantado que conseguiu apenas inclinar a cabeça em sinal de aprovação. A criança continuou:
- Era uma vez um homem que comprou um melão num bazar com uma moeda de cobre. Ao abri-lo descobriu que dentro dele havia uma cidade, de forma que desceu até ela e começou a caminhar, tentando descobrir que tipo de lugar era aquele. Quando se dirigiu a um pátio para ver se encontrava um porteiro a quem pudesse perguntar o caminho, viu uma cena estranha. Havia galinhas cantando e galos pondo ovos. O porteiro quando apareceu lhe indicou o caminho para uma casa de chá onde ele poderia beber algo. Mas ao invés de ter que pagar pelo chá, depois de bebê-lo, foi o dono da casa de chá que lhe deu uma peça de ouro por ter tomado chá e comido um doce! Nesse momento houve um grande rebuliço na rua, e as pessoas começaram a se juntar e disseram que o rei estava chegando. Todas as pessoas dessa cidade estavam usando roupas muito bonitas, mas o rei surgiu vestido em trapos e farrapos.
- Pare, pare! Eu não posso ouvir nem mais uma palavra dessa historia sem pe nem cabeça! – gritou o sultão. – Quem já ouviu falar de uma cidade dentro de um melão, de donos de casas de chá que pagam aos seus clientes por tomarem chá, de galinhas que cantam como galos, ou de um rei que anda em farrapos enquanto seu povo veste sedas?
- Vossa Majestade – retrucou a criança. – E quem já ouviu falar de um rei se casando com a esposa de um vendedor de contas?
Ouvindo isso o sultão riu gostosamente, e nesse momento sua paixão pela mulher do vendedor de contas terminou. Ele fez um sinal para Mahbub levar a criança, e este agradeceu a Allah por sua libertação.
Em seguida a criança foi levada de volta para sua mãe, a djin, e o vendedor de contas se mudou com sua bela mulher para outra cidade.