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19 agosto 2019

A Casa de Hospedes

O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.
A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.
Receba e entretenha a todos
Mesmo que seja uma multidão de dores
Que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.
O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.
Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.


Rumi (Mestre sufi do sec. XII)

17 setembro 2018

Os artistas chineses e gregos


Os chineses e os gregos discutiam diante do Sultão qual deles era o povo que melhor manifestava o Dom da pintura, e, para decidir a disputa, o Sultão destinou uma casa para cada um fazer seu trabalho.

Os chineses compraram todo tipo de tintas e coloriram sua casa do modo mais elaborado possível. Os gregos, por seu lado, não usaram nenhuma cor, mas contentaram-se em limpar as paredes de sua casa de toda a sujeira e a lustrá-las até que estivessem muito limpas e brilhantes.

Quando as duas casas foram oferecidas para a inspeção do Sultão, a que fora pintada pelos chineses foi muito admirada e elogiada, mas a casa grega ganhou prêmio, pois todas as cores da casa chinesa refletiam-se nas suas paredes e apareciam nesta, com infindável variedade de cores e matizes.

Como o mal gera o mal


Um eremita caminhava por um lugar deserto quando chegou a uma gruta enorme cuja entrada não era facilmente visível. Decidiu descansar e entrou. Logo notou o brilhante reflexo da luz sobre um monte de ouro.
          Assim que se deu conta do que tinha visto, o eremita começou a correr, fugindo o mais depressa que pôde.
          Aconteceu que havia três ladrões que passavam muito tempo naquele ponto do deserto com a intenção de roubar viajantes. Logo o homem piedoso passou por eles. Os ladrões se surpreenderam, alarmando-se até, vendo o homem correndo sem que ninguém o perseguisse. Sairam do seu esconderijo e detiveram-no, perguntando-lhe o que estava acontecendo.
          - Estou fugindo do diabo, irmãos – disse. – Ele está me perseguindo.
          Os bandidos não conseguiam ver ninguém perseguindo o devoto.
          - Mostra-nos quem está atrás de ti – disseram.
          - Eu o farei – falou o eremita, com medo deles.
          Levou-os em direção a gruta, rogando-lhes que não se aproximassem dela. A essa altura, naturalmente, os ladrões estavam muito curiosos com a advertência e insistiram em ver o motivo de tanto alarme.
          - Aqui está a morte que me perseguia – disse o ermitão.
          Os malfeitores, é claro, ficaram encantados. Evidentemente consideraram o eremita meio louco e o deixaram ir, enquanto se felicitavam por sua boa sorte.
          Em seguida começaram a discutir sobre o que deveriam fazer com sua presa, pois tinham receio de deixar o tesouro novamente só. Decidiram por fim que um deles apanharia um pouco de ouro, iria à cidade, onde o trocaria por comida e outras coisas necessárias, e depois procederiam à divisão.
          Um dos ladrões se apresentou voluntariamente para realizar a missão. Pensou consigo mesmo:
          ‘Quando chegar à cidade poderei comer tudo o que quiser.
Depois envenenarei o resto da comida. Assim os outros dois morrerão, e o tesouro será só meu’.
          Na sua ausência, porém, os outros dois também tinham estado pensando.
          Tinham decidido que, mal o espertalhão regressasse, o matariam. Depois comeriam sua comida e dividiriam o tesouro em duas partes, em vez de três.
          No momento em que o pilantra chegou à gruta com as provisões, os outros dois caíram sobre ele e, a punhaladas, o mataram. A seguir comeram toda a comida, e morreram por causa do veneno que seu companheiro havia posto nela.
          Dessa maneira, como o eremita predissera, o ouro realmente tinha significado a morte para os que tinham deixado se influenciar por ele, e o tesouro permaneceu onde estava, na gruta, por muito tempo.

15 agosto 2017

A Historia de Yunus Emré

Yunus Emré, em tempos muito antigos, inventou contos mais duráveis que a memória de sua própria vida. Foi também um incansável buscador da verdade. Aos vinte anos aproximadamente, ou talvez mais jovem ainda, veio-lhe ao coração uma avidez pelo conhecimento que o levou pelos caminhos do mundo. Ele partiu na esperança que essa sede de saber o conduzisse a um mestre que o iluminasse. Esse mestre foi-lhe dado encontrar depois de dez anos de errância miserável, no grande vento de uma colina, em plena estepe da Anatólia.. Chamava-se Taptuk e era cego.
     Taptuk também havia viajado muito, mas por caminhos diferentes dos de Yunus. Adolescente ainda, raspou sua cabeça e sobrancelhas e vestindo um gorro de feltro vermelho foi combater invasores mongóis. Atravessou tantas derrotas quantas efêmeras vitórias. Cavalgou com o sabre entre os dentes, perseguindo homens tão loucos quanto ele.
     Odiou, pilhou, matou, cem vezes perdeu e encontrou sua alma no furor dos combates, até que finalmente o silencio se abateu sobre sua cabeça. Numa noite de derrota, ele foi deixado como morto num campo de batalha, à beira de um riacho. Lá, uma mulher, a primeira de sua existência com exceção de algumas prostitutas de tavernas, finalmente debruçou-se sobre ele. Ela o recolheu, cuidou dele até curá-lo. Só não pode devolver-lhe a visão que lhe tinha sido tomada por um sabre inimigo. Ela então lhe ofereceu sua vida, sua mão para conduzi-lo. Desse dia em diante, guiado por sua esposa, Taptuk não sonhava outra coisa a não ser encontrar ele mesmo um caminho até a fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.
     Uma noite, nesse deserto seco onde ninguém se aventurava, com exceção de alguns pastores, ele alcançou a fonte. Lá, construiu sua casa. Outros buscadores juntaram-se a ele, de tempos em tempos, levados por não se sabe que vento da alma. Eles reconheceram nesse homem imponente e de poucas palavras o mestre que eles esperavam. Construíram suas cabanas perto da sua e em volta levantaram uma paliçada.
     Quando Yunus Emré chegou a esse lugar, o monastério de Taptuk, o cego, não era mais do que isso: algumas choupanas baixas rodeadas por um muro de pedras secas na estepe infinita. Taptuk, assim que apalpou o rosto e os ombros deste andarilho faminto de saber, prometeu-lhe a verdade.
     - Ela chegará aos poucos, disse-lhe. Por enquanto seu trabalho será varrer sete vezes por dia o pátio do monastério. Yunus obedeceu de coração. No instante mesmo em que se viu diante desse ancião de cabeça raspada, uma confiança inquebrantável apoderou-se dele. Sete vezes por dia ele varria o pátio com entusiasmo, saudando alegremente o mestre e seus discípulos, quando eles se reuniam na casa da esposa onde Taptuk, o cego, ensinava todas as manhãs. Mas ninguém respondia às suas saudações. "Está bem que os discípulos me ignorem, dizia-se, mas aquele que  tão bem me acolheu em sua casa, por que não me dirige a palavra?"
     Assim se passou um ano, depois dois e três anos, sem que ninguém falasse com ele. Então, seu coração tornou-se pesado. "Sem duvida este silencio significa alguma coisa, pensou, seguramente meu mestre quer ensinar algo para minha alma, pois é à alma que se dirige a palavra sem voz.
     "Refletiu sobre sua solidão, enxotando sete vezes por dia o pó que o vento trazia sem cessar para o pátio do monastério. Enfim, numa manhã de primavera, ao sair de sua cabana, a vassoura nos ombros, uma luz lhe veio. ”Descobri! Taptuk quer ensinar-me a paciência", se disse ele. Seu coração encheu-se de júbilo e ele voltou a varrer o pátio com um ardor renovado.
     Cinco anos se passaram. Dois outros se escoaram ainda, depois três, depois cinco novos anos, sem que sua sorte mudasse. Então Yunus desesperou-se. "Que fiz eu para merecer tão longa indiferença?” se disse ele. Talvez meu mestre tenha me esquecido. Ou talvez não seja eu para ele senão um idiota recolhido por piedade, bom apenas para varrer o pátio. Esforçou-se, no entanto, para refletir desapaixonadamente. Numa noite de tempestade, veio-lhe ao espírito que Taptuk quisesse lhe ensinar a humildade. Em meio à escuridão atormentada em que se encontrava, ele sorriu. "É isso. Ele quer me ensinar a humildade". Na manhã seguinte, quando iniciou o trabalho, seus gestos estavam mais comedidos e, porque seu coração estava em paz, ele se pôs, enquanto varria o pátio, a cantarolar. Pouca coisa. Palavras que lhe subiam aos lábios e que ele deixava ir ao vento pela única satisfação de ouvir voz humana. Entretanto, sua confiança em Taptuk pouco a pouco o deixou. Este homem, decididamente, o enganara. Ele não tivera jamais a intenção de ensinar-lhe o que havia prometido. "Perco minha vida a esperar", se disse ele.
     Cinco anos ainda, varreu o pátio, sem que ninguém o escutasse. Uma noite, cansado dessa miserável existência e convencido de que ninguém se aperceberia de sua ausência, decidiu deixar aquele lugar onde, depois de quinze anos de humilde paciência, não havia encontrado senão amargura e melancolia.
     Ele se foi pela noite, caminhando sempre em frente. Andou até o amanhecer, embriagado de liberdade sem esperança. Sentiu fome e sede mas não havia nenhuma fonte onde saciar-se, nenhum abrigo onde pudesse refazer as forças neste infinito deserto de ervas amarelecidas, pedras e vento.
"Vou morrer, se disse. Que importa? Mais vale morrer caminhando do que varrendo o pátio de um louco". Andou, por três dias inteiros. Na noite do terceiro dia, no momento em que ia deitar-se sobre um rochedo para oferecer seu corpo extenuado aos abutres, percebeu ao longe um acampamento. Surpreendeu-se. Nenhum viajante viria a essas terras. Quem poderiam ser essas pessoas? Aproximou-se. Viu homens sentados na entrada de uma grande tenda. Festejavam rindo e falando alto. Quando o viram, fizeram sinal e, gritando alegremente , convidaram-no a compartilhar sua refeição. Frutas deliciosa, assados apetitosos, bebidas de todas as cores em frascos de vidro estendiam-se  em profusão sobre um tapete de lã. Yunus acercou-se deles, bebeu, comeu, e finalmente ousou perguntar a essas pessoas por qual milagre, neste deserto hostil, eles se achavam assim providos de alimentos tão raros, como ele jamais havia experimentado.
    Uma voz conduziu-nos aqui, disseram-lhe. Com certeza é o melhor lugar do mundo. Todos os dias o vento nos traz de longe os cantos de um dervixe desconhecido. Basta escutá-los e cantá-los que logo aparecem diante de nós todas essas iguarias suculentas que você vê. seríamos loucos, se fossemos viver noutro lugar.
      Yunus extasiou-se, confessou que jamais conhecera magia igual e atreveu-se a perguntar a seus companheiros se eles poderiam ensinar-lhe tais cantos para que ele não morresse de fome pelo caminho.
     - Com prazer, responderam os homens. E se puseram a cantar. Então Yunys, com os olhos arregalados e a boca aberta, ouviu os cantos que ele mesmo inventara durante cinco anos, varrendo o pátio do monastério. Reconheceu as mesmas palavras que pronunciara com o único desejo de enganar a solidão. Músicas nascidas do seu coração, na esperança de espantar a melancolia. Eram a sua obra. No mesmo instante ele compreendeu para qual trabalho ele estava neste mundo, experimentou a pura verdade de sua alma e sofreu a pior vergonha pensando em Taptuk que o havia instruído, sem que ele percebesse, como a um filho infinitamente amado. Então abraçou e beijou os homens que o haviam acolhido e voltou ao monastério correndo e chorando. "Taptuk me perdoará por eu ter duvidado dele? Se dizia ele, bebendo o vento. Algum dia ele me perdoará?"
     Já era noite quando chegou à porta carcomida que fechava a paliçada. Bateu chamando e pedindo piedade. O rosto de esposa  de Taptuk apareceu em cima do muro.
     -Eis que está de volta, Yunus, disse ela docemente."Pobre criança! Não sei se Taptuk o aceitará de novo entre nós. Sua partida o desesperou.'"Que desgraça, disse-me ele, meu filho mais querido deixou-me. Que vale a minha vida daqui para frente ?" Vou abrir. Você vai dormir na poeira do pátio. Amanhã, quando seu mestre fizer o passeio matinal, vai bater o pé no seu corpo. Se ele disser: "Quem é este homem?", então, você deverá partir para sempre. Mas se disser: "É você, meu bom Yunus?" então saberá que pode outra vez viver em sua presença. Entre, meu filho.
     Yunus deitou-se na poeira do chão. Ao amanhecer viu aproximar-se Taptuk, o cego, com sua esposa. Fechou os olhos, sentiu um pé contra suas costas e ouviu:
     - É você, meu bom Yunus?
     Ele se levantou inebriado de luz e de felicidade, correu para sua vassoura e começou novamente a varrer o pátio.
     Assim ele fez até sua morte, sem falhar um único dia, quando se tornou semelhante ao pó mil vezes levado pelo vento, seus cantos se elevaram, invadiram os lugares onde viviam os homens e os nutriam com uma bondade tão perseverante que ainda hoje, nove cidades na Anatólia reivindicam o privilégio de ter em seu território o verdadeiro túmulo de Yunus Emré, o homem que Taptuk, o cego, iluminou.


14 abril 2015

O Rei que resolveu ser generoso

Certa vez, um rei do Irã ordenou a um dervixe: “Conte-me uma história.”O dervixe disse: “Majestade, eu lhe contarei a história de Hatim Tai, o rei árabe e o homem mais generoso de todos os tempos, pois, se pudesse ser como ele, seria, realmente, o maior rei vivo. 
“Prossiga”, disse o rei. “Mas, se sua história não me agradar, tendo lançado dúvidas quanto à minha generosidade, perderá sua cabeça”. O rei falou assim porque na Pérsia era costume que todos na corte dissessem ao monarca que ele tinha qualidades mais admiráveis do que qualquer pessoa no mundo – do passado, do presente ou do futuro.
“Continuando”, disse o dervixe à maneira dos dervixes (pois eles não ficam facilmente desconcertados), “a generosidade de Hatim Tai superava, na ação e no espírito, a de todos os outros homens.” E esta é a história que o dervixe contou:
Um outro rei árabe cobiçava as posses, as aldeias, os oásis, os camelos e os guerreiros de Hatim Tai. Esse homem declarou guerra a ele, enviando um mensageiro com a seguinte declaração de guerra: “Renda-se a mim ou, do contrário, atacarei você e suas terras, e me apossarei da sua soberania.” 
Quando essa mensagem chegou à corte de Hatim Tai, seus conselheiros imediatamente lhe sugeriram que mobilizasse os guerreiros em defesa do seu reino, afirmando: “Certamente, não há um só homem ou uma só mulher fisicamente aptos, entre seus súditos, que não sacrificariam com alegria sua vida em defesa do nosso amado rei.”
Mas Hatim, contrariando as expectativas do povo, declarou: 
“Não, em vez de cavalgarem até eles e derramarem seu sangue por mim, eu fugirei. Se me tornasse a causa do sacrifício da vida de um só homem ou de uma só mulher, estaria longe do caminho da generosidade. Se vocês se renderem pacificamente, esse rei se contentará em aceitar seus serviços e tributos, e assim não sofrerão danos materiais. Se, ao contrário, resistirem, ele terá direito, segundo as convenções de guerra, de considerar suas posses como despojos, e, se perderem a guerra, ficarão sem um centavo. “ 
Assim dizendo, Hatim pegou apenas um bastão firme e rumou para as montanhas próximas, onde encontrou uma gruta e mergulhou em contemplação.
Metade da população ficou profundamente tocada com o fato de Hatim Tai sacrificar sua posição e suas riquezas em favor deles. Mas outros, especialmente aqueles que queriam se destacar como corajosos, murmuraram: “Como vamos saber se este homem não é simplesmente um covarde?” E outros, que tinham pouca coragem, criticaram Hatim, dizendo: “De certo modo, ele salvou a si mesmo, pois nos abandonou a um destino que desconhecemos. Talvez nos tornemos escravos desse rei desconhecido, que é, afinal de contas, tirano o suficiente para declarar guerra a seus vizinhos. “
Alguns outros, sem saber no que acreditar, permaneceram em silêncio, até que pudessem ter meios para formar uma opinião.
E foi assim que o rei tirano, acompanhado por seu impressionante exército, tomou posse do reino de Hatim Tai. Ele não aumentou os impostos, não tomou para si mais do que Hatim recebia do povo em troca de ser seu protetor e administrador da justiça. No entanto algo o perturbava. Tinha ouvido boatos de que, embora tivesse se apoderado de um novo reino, ele lhe havia sido cedido por um ato de generosidade de Hatim Tai. Essas eram as palavras pronunciadas por algumas pessoas do povo.
“Não poderei ser o verdadeiro senhor dessas terras”, declarou o tirano, “enquanto não capturar Hatim Tai. Enquanto viver, haverá lealdade a ele no coração de muitas dessas pessoas. Isso significa que não são meus súditos completamente, mesmo que, aparentemente, se comportem como tal.”
Assim, publicou um edital anunciando que qualquer pessoa que trouxesse Hatim Tai à corte seria recompensada com cinco mil moedas de ouro. Hatim Tai não sabia nada sobre isso, até que um dia, sentado do lado de fora de sua gruta, ouviu uma conversa entre um lenhador e sua esposa.
O lenhador disse: “Querida esposa, estou velho e você é muito mais jovem do que eu. Temos filhos pequenos e, na ordem natural dos acontecimentos, é provável que eu morra antes de você e enquanto as crianças ainda são muito jovens. Se ao menos conseguíssemos encontrar e capturar Hatim Tai, por quem o novo rei oferece cinco mil moedas de ouro, o futuro de vocês estaria garantido.
“Você deveria se envergonhar do que diz!”, respondeu a mulher. “Seria preferível você morrer e nossos filhos passarem fome a termos nossas mãos manchadas com o sangue do homem mais generoso que já existiu e que sacrificou tudo por nós.”
“O que você diz está correto”, argumentou o velho lenhador, ”mas um homem tem que pensar nos seus próprios interesses. Afinal de contas, tenho responsabilidades. E, seja como for, a cada dia, mais e mais pessoas acreditam que Hatim Tai é um covarde. Será apenas uma questão de tempo até que tenham vasculhado cada possível esconderijo à procura dele.”
“A crença na covardia de Hatim é estimulada pelo amor ao ouro. Mais conversas desse tipo, e Hatim terá vivido em vão”, replicou a mulher.
Nesse momento Hatim se levantou e se revelou ao casal atônito: “Eu sou Hatim Tai. Levem-me ao novo rei e reclamem sua recompensa.”
O velho homem ficou envergonhado e seus olhos se encheram de lágrimas. “Não, grande Hatim”, disse , “não posso fazer isso.”
Enquanto discutiam, algumas pessoas, que estiveram à procura do rei fugitivo, agruparam-se em torno deles.
“Se não o fizer”, disse Hatim,”vou me entregar ao rei e dizer que você me escondia aqui. Nesse caso, será executado por traição.
Percebendo que se tratava de Hatim, a corja avançou, prendeu seu antigo rei e o conduziu até o tirano, seguidos pelo desolado lenhador.
Quando chegaram à corte, cada um reivindicou ter capturado Hatim pessoalmente. O antigo rei, vendo o ar indeciso do seu sucessor, pediu permissão para falar: “Saiba, ó rei, que meu testemunho deve também ser ouvido. Fui capturado por este velho lenhador, e não por aquela corja ali. Dê a ele, portanto, sua recompensa e faça comigo o que desejar...”
Nesse momento, o lenhador deu um passo à frente e contou ao rei a verdade sobre Hatim Tai ter se oferecido em sacrifício pela segurança futura da sua família. 
O novo rei ficou tão impressionado com essa história que ordenou a retirada do seu exército, restituiu o trono a Hatim Tai e voltou para seu lugar de origem.
Depois de ouvir essa história, o rei do Irã, esquecendo-se da ameaça que fizera ao dervixe, disse: “Um conto excelente, ó dervixe, do qual podemos nos beneficiar. Você, de qualquer modo, não pode tirar nenhum proveito, tendo abandonado as expectativas desta vida e nada possuindo. Mas eu, eu sou um rei. E sou rico. Os reis árabes, pessoas que vivem de lagartos cozidos, não podem se equiparar a um rei persa quando se trata de generosidade verdadeira. Uma ideia me ocorreu! Ao trabalho!”
Levando o dervixe consigo, o rei do Irã convocou seus maiores arquitetos e os reuniu num grande espaço aberto, ordenando-lhes que desenhassem e construíssem ali um imenso palácio. Ele deveria ser composto de um cofre central e quarenta janelas.
Quando ficou pronto, o rei reuniu todos os meios de transporte disponíveis para abarrotar o palácio com moedas de ouro. Após muitos meses dessa atividade, uma proclamação foi expedida:
“Viva! O Rei dos Reis, Fonte da Generosidade, ordenou que um palácio com quarenta janelas fosse construído. Todos os dias, por essas janelas, ele distribuirá pessoalmente ouro para todas as pessoas necessitadas.”
Como era de se esperar, multidões de necessitados se reuniram, e o rei entregou uma moeda de ouro para cada um, aparecendo todos os dias numa janela diferente. Então, ele notou que havia um certo dervixe que, diariamente, se apresentava diante da janela, pegava sua moeda de ouro e ia embora. No início, o rei pensou: “Talvez ele queira levar o ouro para alguém necessitado.” Depois, quando viu o homem de novo, pensou: “Talvez esteja aplicando a regra dervixe da caridade secreta e redistribuindo o ouro.” E, a cada dia, quando via o dervixe, o desculpava mentalmente; até o quadragésimo dia, quando descobriu que sua paciência tinha chegado ao fim. Segurando a mão do dervixe, o rei disparou: “Verme ingrato! Você não diz obrigado nem demonstra qualquer apreço por mim. Não sorri, não se curva, e volta dia após dia. Por quanto tempo vai proceder assim? Está economizando à custa da minha generosidade para se tornar rico? Ou está emprestando o ouro a juros? Seu comportamento está realmente muito distante do comportamento daqueles que sustentam a honorável insígnia do manto de retalhos.”
Assim que estas palavras foram pronunciadas, o dervixe atirou ao chão as quarenta moedas de ouro que havia recebido e disse ao rei: “Saiba, ó rei do Irã, que a generosidade não pode existir sem que três coisas a precedam. A primeira é dar sem o sentimento de generosidade, a segunda é a paciência, e a terceira é não ter suspeitas.”
Mas o rei nunca aprendeu. Para ele, a generosidade estava atrelada ao que as pessoas pensariam dele e a como se sentia sendo “generoso”. 
Esta história tradicional, conhecida pelos leitores principalmente por meio do clássico urdu A História dos Quatro Dervixes, ilustra sucintamente importantes ensinamentos sufis.
A imitação sem as qualidades básicas que sustentem essa imitação é inútil. A generosidade não pode ser exercitada a menos que outras virtudes também sejam desenvolvidas.
Algumas pessoas não podem aprender mesmo quando expostas a ensinamentos, representados neste conto pelo primeiro e pelo segundo dervixes.

18 março 2015

O ídolo que não respondia

Era uma vez um homem que  se entregou a adoração de um ídolo. Durante vários anos, as coisas correram bem, mas um dia ele não pode resolver os problemas. Ele rolou na poeira do chão o tempo diante do ídolo, gemendo:

- Ajude-me, ídolo! Estou prestes a morrer. Oh, tem piedade de mim!

Ela orou e orou desta forma por muito tempo. Mas ele não obteve qualquer resposta.

- Oh, ídolo! Eu tinha que ser acorrentado ao erro por todos esses anos que eu o adorava! Ajuda-me agora, nestes tempos de calamidade ou voltarei para o Todo-Poderoso e pedirei a Ele para ajudar-me.

Mas ele continuou sem qualquer resposta.

Ele deixou o templo e, antes que ele pudesse limpar a poeira, o Todo-Poderoso fez seus desejos fossem cumpridos.

No entanto, um homem sábio, que tinha visto todos esses fatos, foi surpreendido.

"Como é possível que Deus, perguntou-se a si, conceda a um adorador de ídolos vulgar, falsas e sem fé, seus pedidos?", E ele não conseguia entender até que o Todo-Poderoso enviou uma mensagem ao seu coração:

"É verdade que o estúpido homem velho passou anos adorar um ídolo. Ele pediu ajuda e sua oração foi rejeitada. Mas se eu me recusasse também, que diferença haveria entre o ídolo e eu? ".

Saadi

06 março 2015

O vendedor de contas

Era uma vez um vendedor de contas que tinha uma linda mulher chamada Kubra. Numa sexta feira, Mahbub, pois este era o seu nome, estava vendendo sua mercadoria na praça em frente ao palácio quando o sultão chegou à janela e viu Kubra ao lado de seu marido. O véu esvoaçado deixava seu rosto à mostra, e os colares de contas pendentes de seus braços.
- Por minha fé! – exclamou o sultão. – Essa criatura tem as feições mais belas que já vi. Não existe outra igual a ela em todo o meu palácio. Quero me casar com ela.
E assim dizendo mandou chamar seu grão-vizir.
- Vizir - disse ele, - traga-me a mulher do vendedor de contas. Eu a quero aqui em meu palácio, e seu marido deve morrer.
- Que possa viver eternamente, ó sultão! – disse o vizir.
- Certamente arranjaremos um modo de nos livrarmos do vendedor de contas, mas não devemos matá-lo. O povo se insurgirá contra o senhor, e Vossa Majestade poderá ter que fugir. Por isso, se Vossa Majestade quiser me ouvir, posso sugerir um plano.
- Claro, vizir. Fale logo, sem omitir nenhum detalhe – disse o sultão.
- Soberano do Mundo – entoou o vizir. – Permite que o  vendedor de contas seja intimado a fazer uma cortina larga e cumprida o suficiente para ser pendurada atrás do trono. Caso ele se recuse a fazê-lo, nós lhe diremos que se não aprontá-la em sete dias pagará com sua própria vida. Ele certamente recusará, pois como poderia um simples vendedor de contas fabricar uma cortina para o palácio do sultão? Dessa forma ele será obrigado a fugir do país, e então poderemos trazer sua esposa para sua Majestade em perfeita segurança.
- Excelente! – riu o sultão. – Ponha imediatamente o plano em andamento.
Assim, enquanto Mahbub estava anunciando:
- Contas! Contas! Comprem minhas contas de Bokhara, contas de Damasco...
O grão-vizir se aproximou e tocou de leve o vendedor de contas com sua bengala de ouro.
Enquanto Mahbub e sua esposa se ajoelhavam diante do dignatório da corte, aterrorizados pela proximidade de tal magnificência, o vizir disse:
- Venha comigo ao palácio imediatamente. O sultão incumbiu-me de designar-lhe uma tarefa que ele gostaria que você executasse.
- Eu? Executar uma tarefa para o sultão?! – exclamou Mahbub. – Mas como eu poderia fazer alguma coisa por Sua Majestade, o sultão?
- Deixe suas contas aí e siga-me – disse o dignitário da corte.
E Mahbub, entregando todas as contas para sua mulher, acompanhou o vizir.
No palácio o vizir levou o vendedor de contas até a sala do trono e mostrou-lhe a janela de treliças de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura que ficava atrás do trono.
- Sua Majestade, Fonte de Sabedoria e Manancial do Conhecimento, decretou que você deve providenciar uma cortina para essa treliça atrás do trono – disse o vizir solenemente.
- Que Allah seja meu juiz – soluçou Mahbub. – Eu não sei tecer nem fiar, sou apenas um humilde vendedor de contas.
Como vou fazer tal coisa para Sua Auspiciosa Majestade?
- você tem sete dias para fazê-lo – disse o vizir. - Se ao final desse prazo não a tiver trazido para o palácio você deverá morrer.
E ele dispensou Mahbub com um aceno de mão.
Quando Mahbub voltou para o seu ponto de venda, sua mulher lhe perguntou:
- O que é que o sultão quer que você faça?
- Ele quer que eu lhe forneça uma cortina de muitos metros de comprimento e outros tantos de largura, mas nunca serei capaz de fazê-la em sete dias – disse Mahbub. – Assim sendo, deverei fugir para salvar minha vida ou serei executado.
Não tenha medo, marido – disse Kubra. – Eu lhe direi o que fazer.
E continuou, explicando que ela na verdade era irmã de uma djin, uma mulher-gênio que morava num poço.
- Vá até o poço perto do portão em ruínas – continuou – e grite para dentro dele: ´Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles`.
 Mahbub foi tão rápido quanto suas pernas permitam em direção ao portão em ruínas e falou as profundezas do poço:
- Ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda. Dê-me, em seu nome, a roca de fiar mágica e o tear encantado, pois ela precisa deles.
Tão logo as palavras saíram de sua boca os objetos mencionados na beira do poço. Ele os pegou e os levou para sua mulher. Ela se trancou num quarto, e durante toda a noite ele a ouviu fiando e tecendo. Quando o primeiro galo cantou pela manha ela saiu do quarto, exausta, e ficou o dia todo dormindo. Assim, todos os dias, durante seis dias, ela dormia, e todas as noites, ele ouvia o som da roca e do tear. No último dia, quando os galos cantavam anunciando o amanhecer, Kubra saiu do quarto com uma cortina de sessenta metros de comprimento por sessenta metros de largura em seus braços, feita do mais lindo tecido azul-escuro, brilhante como o céu noturno, com mil estrelas. Mahbub a olhou com assombro e alegria.
- Ora mulher! – disse. – Que maravilha é essa? Essa cortina é digna das janelas de qualquer palácio. Que bênçãos recaiam sobre você, minha vida está salva.
Quando o Sol estava alto, Mahbub, vestindo suas melhores roupas, tomou o rumo do palácio e pediu para ser admitido à presença do sultão.
Ao ver o maravilhoso tecido, o vizir ficou verdadeiramente surpreso, e fez com que os servos reais pendurassem imediatamente a fabulosa cortina atrás do trono. Mahbub voltou para casa com uma bolsa cheia de ouro que o sultão lhe deu assim que viu a delicada textura daquele pano.
- E agora, o que faremos? – disse o sultão. – O vendedor de contas foi mais esperto do que nós. Não posso mais executá-lo, contudo não consigo esquecer a linda esposa desse miserável homem.
- Posso Vossa Majestade viver para sempre! – disse o vizir. – Lembrei-me de uma coisa que ele nunca poderá fazer.
Para tanto, dê-me mais uma semana e executaria meu plano.
No dia seguinte o vendedor de contas e sua mulher estavam mais uma vez mostrando suas mercadorias para os passantes quando, de novo, o grão-vizir se aproximou.
- Ó vendedor de contas, Sua Magnificente Majestade pediu-me para dize-lhe que se você não conseguir, em uma semana, uma criança de sete dias de idade capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência sua vida estará perdida.
E assim dizendo, virou-se e partiu.
Dessa vez o vendedor de contas entrou em desespero.
- Mulher, mulher – gritou quase em lágrimas. – O sultão encarregou-me de uma tarefa impossível. Como posso encontrar em uma semana uma criança de sete dias de idade que seja capaz de contar-lhe uma historia em sua câmara de audiência? É uma sentença de morte, portanto esta noite devo fugir para salvar minha vida; e nunca mais verei você.
 - Ouça, marido – disse Kubra. – Lembre-se que minha irmã é uma djin. Ela não nos ajudou antes? Fique em paz, e daqui a sete dias vá mais uma vez ao poço.
- O que devo fazer? – perguntou ele.
- Vá como antes ao mesmo poço e diga: ‘ó irmã de Kubra, sua irmã a saúda! Envie seu filho de sete dias de idade, pois necessitamos dele por uma noite’.
Quase não conseguindo acreditar em sua mulher, o vendedor de contas encheu-se de paciência aguardando o término da semana, e então foi até o poço. Depois de falar o que sua esposa lhe havia ensinado, ele ouviu uma voz dizendo:
- Puxe o balde.
Assim ele fez, e para seu espanto viu que dentro dele havia um bebê envolto em fraldas. Mahbub levou-o para casa e disse à sua mulher:
- Aqui está a criança. O que devo fazer agora?
- Leve-a até a câmara de audiência – disse ela. – Pois o sultão e todos os cortesãos estão lá, e hoje é o sétimo dia.
Então Kubra falou o nome de Allah no ouvido da criança, e Mahbub partiu para o palácio.
Todos os cortesãos lhe deram passagem quando lá chegou.
O sultão, sentado em seu trono, observava com grande interesse enquanto colocavam o bebê numa almofada à sua frente.
- Como? Esse bebê pode falar? Ele tem sete dias de idade? – perguntou o vizir.
- Sim, Majestade – respondeu Mahbub. – Ele contará uma história ao Sultão Imperial logo que houver silencio.
Não se ouvia um único som na ampla câmara de audiências durante todo o tempo em que o bebê se esforçava para sentar-se. Logo, ele abriu a boca como se fosse falar.
- Bobagem! – disse o sultão. – Ele é muito pequeno, não será capaz de me contar nenhuma história. Ele não pode nem mesmo chorar.
Nesse momento a criança conseguiu sentar-se ereta na almofada, e dirigiu-se ao sultão.
- Ó Auspicioso Sultão, Fonte de Conhecimento! Posso falar?
O governante estava tão espantado que conseguiu apenas inclinar a cabeça em sinal de aprovação. A criança continuou:
- Era uma vez um homem que comprou um melão num bazar com uma moeda de cobre. Ao abri-lo descobriu que dentro dele havia uma cidade, de forma que desceu até ela e começou a caminhar, tentando descobrir que tipo de lugar era aquele. Quando se dirigiu a um pátio para ver se encontrava um porteiro a quem pudesse perguntar o caminho, viu uma cena estranha. Havia galinhas cantando e galos pondo ovos. O porteiro quando apareceu lhe indicou o caminho para uma casa de chá onde ele poderia beber algo. Mas ao invés de ter que pagar pelo chá, depois de bebê-lo, foi o dono da casa de chá que lhe deu uma peça de ouro por ter tomado chá e comido um doce! Nesse momento houve um grande rebuliço na rua, e as pessoas começaram a se juntar e disseram que o rei estava chegando. Todas as pessoas dessa cidade estavam usando roupas muito bonitas, mas o rei surgiu vestido em trapos e farrapos.
- Pare, pare! Eu não posso ouvir nem mais uma palavra dessa historia sem pe nem cabeça! – gritou o sultão. – Quem já ouviu falar de uma cidade dentro de um melão, de donos de casas de chá que pagam aos seus clientes por tomarem chá, de galinhas que cantam como galos, ou de um rei que anda em farrapos enquanto seu povo veste sedas?
- Vossa Majestade – retrucou a criança. – E quem já ouviu falar de um rei se casando com a esposa de um vendedor de contas?
Ouvindo isso o sultão riu gostosamente, e nesse momento sua paixão pela mulher do vendedor de contas terminou. Ele fez um sinal para Mahbub levar a criança, e este agradeceu a Allah por sua libertação.
Em seguida a criança foi levada de volta para sua mãe, a djin, e o vendedor de contas se mudou com sua bela mulher para outra cidade.  

26 fevereiro 2015

A Jovem que Voltou da Morte

Em tempos passados, vivia uma jovem muito bela, filha de um bom homem, mulher entre as mulheres, única em seu encanto e na delicadeza de sua índole.
Quando estava em idade de casar, três jovens, cada qual, aparentemente, com grandes qualidades e promessas, pediram sua mão.
Havendo decidido que todos tinham as mesmas condições, o pai deixou a escolha para a jovem.
Mas os meses se passaram e a jovem não parecia decidir-se. Um dia, repentinamente, adoeceu e morreu em poucas horas.
Os três rapazes, unidos em sua dor, levaram seu corpo ao cemitério e a enterraram em profundo silêncio e tristeza.
O primeiro jovem fez do cemitério seu lar, passando ali suas noites, em dor e meditação, incapaz de compreender o porquê do destino que a havia levado.
O segundo jovem se lançou aos caminhos e vagou pelo mundo em busca de conhecimento, como um faquir.
O terceiro dedicou seu tempo a consolar o entristecido pai.
Um dia, o jovem que se convertera em faquir chegou a um lugar onde residia um homem famoso por suas misteriosas artes. Por ser um buscador de conhecimento, ao se apresentar à porta do sábio foi admitido à sua mesa.
Quando estavam a ponto de começar a comer, uma criança pequena desandou a chorar. Era o neto do sábio. Este levantou o menino e o arrojou ao fogo.
O faquir deu um salto e se dispôs a abandonar a casa, gritando:
- Demônios infames, eu já tive a minha parte nas penas deste mundo, mas este crime ultrapassa os registrados em toda história.
Não pense nada sobre isto - disse o sábio - pois as coisas simples parecem diferentes quando há ausência de conhecimento.
Dizendo isto, recitou uma fórmula, balançou um estranho emblema e o menino saiu caminhando do fogo, sem nenhum ferimento.
O faquir memorizou as palavras e a cena e na manhã seguinte, estava a caminho do cemitério onde havia enterrado sua amada.
Em menos tempo que se leva para contar, a donzela estava de pé, diante dele, completamente de volta à vida.
Voltou para a casa de seu pai, enquanto os jovens disputavam entre si qual deles havia merecido sua mão.
O terceiro disse:
- Estive aflito por ela e, como um esposo e genro, aqui vivi, consolando o pai e ajudando-o a sustentar-se.
_ Estive vivendo no cemitério, - disse o primeiro - mantendo contato com ela através de minhas vigílias, cuidando das necessidades de seu espírito e dando-lhe apoio.
- Ambos ignoram que fui eu quem de fato viajou pelo mundo em busca de conhecimento, e quem finalmente lhe devolveu a vida - disse o segundo.
Recorreram à própria jovem, que disse:
- Aquele que encontrou a fórmula para me devolver à vida é um homem humanitário; aquele que velou por meu pai, agiu como um filho para ele; aquele que ficou ao lado do meu túmulo, agiu como um amante. Com ele me casarei.

Extraído do livro O Sufismo no Ocidente, Ed. Dervish.

21 fevereiro 2015

A sopa de pato

Certo dia um camponês foi visitar a Nasrudin, atraído pela grande fama deste e desejoso em ver de perto o homem mais ilustre do país. Ele levou como presente um magnífico pato.
O Mullá, muito honrado, convidou o homem a jantar e pernoitar em sua casa. Comeram uma deliciosa sopa preparada com o pato. Na manhã seguinte, o camponês retornou a sua vila, feliz de haver passado algumas horas com um personagem tão importante.
Alguns dias mais tarde, os filhos deste camponês foram a cidade e em seu regresso passaram pela casa de Nasrudin.
- Somos filhos do homem que lhe presenteou um pato – se apresentaram.
Foram recebidos e servidos com sopa de pato.
Uma semana depois, dois jovens chamaram a porta do Mullá.
- Quem são vocês?
- Somos os vizinhos do homem que lhe presenteou um pato.
O Mullá começou a lamentar haver aceitado aquele pato. Sem mais delongas, fechou a cara e convidou seus hospedes para comer.
Daí a oito dias, uma família completa pediu hospitalidade ao Mullá.
- E vocês quem são?
- Somos os vizinhos dos vizinhos do homem que lhe presenteou um pato.
Então o Mullá fez que se alegrara e os convidou a comer. Em pouco tempo, apareceu com uma enorme sopeira cheia de água quente e serviu cuidadosamente os pratos de seus convidados. Ao provar o liquido, um deles exclamou:
- O que é isto, nobre senhor? Por Deus que nunca havíamos provado uma sopa tão sem graça!
Mullá Nasrudin se limitou a responder:
- Esta é a sopa da sopa da sopa de pato que com gosto ofereço a vocês, os vizinhos dos vizinhos dos vizinhos do homem que me presenteou o pato.

04 janeiro 2015

Anpu e Bata



INTRODUÇÃO DA HISTÓRIA DE ANPU E BATA1 por Idries Shah


O conto de Anpu e Bata, encontrado em um antigo papiro egípcio, tem mais de três mil anos e é considerada a mais antiga história que chegou até nós na forma escrita. Talvez, mesmo naquele tempo, ela já pertencesse a uma tradição antiga. Uma das coisas mais interessantes nessa história é que elementos encontrados em contos de todo o mundo estão contidos nela. A primeira parte tem um paralelo com a história bíblica de José e a esposa de Potifar. O núcleo da história – símbolo-vida indicando morte e a ‘alma-separável’ – aparece em mais de oitocentas versões somente na Europa, e é improvável que os contadores saibam que são parte de uma linha de transmissão que começou na Décima Nona Dinastia do Egito Faraônico.

A história algumas vezes se confunde em parte ou em sua totalidade com o mito de Perseu e Andrômeda, associada às proezas de um matador de dragões, a qual é encontrada em quase todos os países do mundo.
O antigo papiro corroído pelo tempo, hoje no Museu Britânico, contém uma mensagem do escriba original, uma ameaça a quem possa ser descomedido com ele, similar aquelas encontradas em manuscritos Orientais mesmo nos dias atuais:

“Excelentemente terminado em paz para o Ka do escriba da Tesouraria de Kagabu, da Tesouraria do Faraó. E para o Escriba Hora e o Escriba Meramapt. Escrito pelo Escriba Anena, proprietário desse manuscrito. Que Tahui possa castigar aquele que difamar esse manuscrito!”

Era costume dos reis do Oriente, quando satisfeitos com uma história que lhe fora contada, ordenar que fosse escrita e guardada junto ao tesouro.


1 História traduzida do Livro “WORLD TALES – The extraordinary coincidence of stories told in all time, in all places” Collected by Idries Shah.
2 Enviada por Elisete Ternes Pereira


 Anpu e Bata



Era uma vez dois irmãos que viviam no Egito, eles amavam muito um ao outro. O irmão mais velho tinha uma jovem e bela esposa e um bom par de bois para arar os campos. Seu nome era Anpu e o nome do irmão mais novo era Bata. Esse jovem tudo fazia por seu irmão mais velho, seguia-o e aos bois para o campo, esperava por ele como um servo, colhia o milho, cuidava dos animais. Ele trabalhava para o irmão dia e noite, pois a seus olhos, não havia outro como ele em toda a terra do Egito.

Um dia, quando o tempo da semeadura começava, o irmão mais velho disse a Bata, “Traga as sementes para o campo amanhã bem cedo, pois temos que começar a plantar; as cheias do Nilo já recuaram da terra e o dia é propício.” Anpu já havia partido para o campo e Bata devia levar as sementes. Então, Bata foi até a porta da casa de seu irmão e disse a sua bela e jovem cunhada,
“Alcance-me o milho do barril, pois meu irmão e eu precisarmos dele hoje.” A mulher respondeu, “Entre e pegue-o você mesmo, pois estou ocupada fazendo meu cabelo e não posso largar os grampos e fitas para pegar o milho.” Então ele entrou e pegou tanto milho quanto podia carregar, pois queria plantar aproveitando bem o dia, que era propício.

Vendo Bata carregando tal carga, a mulher de seu irmão lhe disse, “Você é forte e bonito, realmente. Eu não tinha notado antes quão atraente você é. Fique comigo um pouco antes de ir para os campos, pois vocês passarão todo o dia fora e eu me sentirei sozinha. Dê-me algo para recordar quando eu estiver só.”

Bata recuou ao ouvir as palavras da mulher e sua face escureceu de raiva. Ele disse, “Você é como uma mãe para mim; você não é a esposa de meu respeitável irmão? Vou esquecer o que você me disse. Esqueça isso você também.” Ele partiu para os campos tentando apagar da mente as sugestões dela, pois ela era a mulher de seu irmão, a qual, embora bela, parecia-lhe agora maldosa aos seus olhos.

Trabalharam nos campos o dia inteiro e retornaram à casa ao entardecer. Esperavam encontrar a comida pronta, como de costume, mas na casa não havia fogo, ou luz, nem cheiro de comida. Bata foi para o estábulo cuidar dos animais e Anpu foi para casa ver o que estava errado com sua esposa. Ela estava na cama, encolhida sob a coberta chorando como se sentisse dor.

“O que há com você?” ele perguntou, “Alguém esteve aqui na minha ausência para perturbar você dessa forma?”

“O único que veio aqui em sua ausência foi seu desgraçado irmão!” ela gritou, “Pergunte a ele o que há de errado comigo!”

“Mas, o que você está dizendo? Ele pôs as mãos em você?” gritou o marido enraivecido.

“Sim,” disse ela, “Eu estava fazendo meu cabelo quando ele entrou para buscar as sementes e disse ‘Fique um pouco comigo antes que eu vá para o campo e meu irmão jamais saberá’ e ele me violentou. Oh, meu marido, não posso olhar para você tamanha a vergonha que sinto!” Então, Anpu afiou sua faca e se colocou em frente ao estábulo, pronto para matar seu irmão tão logo ele viesse juntar-se a eles para jantar.

Totalmente desinformado, o irmão mais novo continuava a fazer suas tarefasno estábulo, quando sua vaca favorita lhe falou:
“Cuidado, Bata, seu irmão afiou a faca e te espera atrás da porta para matá-lo. Corra, não volte à casa ou você morrerá.”
O jovem moço espiou para fora do estábulo e viu seu irmão estranhamente parado, com uma faca na mão. Temendo não ser capaz de explicar a verdadeira situação a seu irmão, fez um buraco na parede de barro do celeiro e fugiu tão rápido quanto seus pés o podiam carregar. Mas o irmão mais velho o ouviu correr e foi atrás dele. A luz do assassino estava em seus olhos.

Então, tomado pelo medo, Bata gritou aos céus: “Ó Grande Ra Harakiti, Senhor Poderoso, Sois aquele que divide o Mal do Bem! Salve me!” e Ra atendeu à sua prece.

Um rio poderoso surgiu entre os irmãos, um rio que Anpu não poderia atravessar mesmo que tivesse um barco, pois estava coalhado de crocodilos. O irmão mais velho estava furioso por não poder alcançar Bata e matá-lo, e o amaldiçoou da outra margem.

Mas Bata lhe falou em alta voz dizendo: “Ó, meu irmão, não me julgues mal. Não posso provar que não cometi erro algum, mas minha vaca me alertou e fugi de você com medo. Por que você decidiu matar-me antes de perguntar se fiz a maldade que você julga que fiz?”

Seu irmão respondeu: “Diga-me, então, você mesmo o que de fato ocorreu?” Bata respondeu, “Fui ao barril pegar as sementes eu mesmo, pois sua esposa estava fazendo o cabelo e disse-me que não desejava deixar a toalete para atender-me. Então, depois de pegar as sementes eu mesmo, ela disse que eu parecia forte e bonito, e tentou-me a ficar um pouco com ela dizendo que você não ficaria sabendo. Vê como a verdade mudou.”

“Você jura por Ra Harakiti que o que contou é verdade?” Gritou o irmão mais velho. “Por Ra Harakiti eu juro que é verdade,” disse o irmão mais novo, e tirou sua faca, e cortou um pedaço de sua carne, e atirou-o na água, e os crocodilos o comeram. Então o irmão mais velho satisfez-se e chorou por Bata e amaldiçoou sua esposa. Ele sabia que não poderia alcançar seu irmão por causa dos crocodilos, quedou-se lá e guardou sua faca.

“Agora sabemos que você fez algo mal tentando matar-me; você poderia fazer algo bom por mim?” disse Bata. Anpu disse que faria e então seu irmão lhe disse, “Estou partindo para o vale da acácia. Volte para sua casa e cuide de seu gado. O que você pode fazer por mim é isso; minha alma será removida e colocada na flor da acácia. Quando a acácia for cortada, e será, ponha a flor num copo de água fria, pois minha alma estará nela. Quando alguém lhe der um copo de cerveja na mão e ela estiver se agitando no vidro, então não se demore, vá em busca da flor, mesmo que tiver que buscá-la por sete anos, e coloque-a na água. Adeus.”

O jovem, então, parou de falar essas coisas estranhas e partiu para o vale da acácia. Seu irmão voltou-se e caminhou de volta à casa, ele estava com raiva de sua esposa e matou-a no calor de sua ira. Então, jogou fora sua faca e cuidou dos campos e do gado ele mesmo, sofrendo por seu irmão.

Muito tempo depois, o irmão mais novo estava vivendo no vale da acácia. Ele havia removido sua alma que agora vivia na flor mais alta da árvore de acácia. Ele havia construído para si próprio uma pequena casa onde vivia e que estava repleta de boas coisas.

Um dia, caminhando pelo vale, ele encontrou os Nove Deuses, que estavam indo inspecionar toda a terra do Egito. Os deuses conversavam entre si quando surgiu Bata no caminho e eles lhe falaram, “Ó Bata, Touro dos Nove Deuses, por que você caminha sozinho? Seu irmão matou a esposa e tudo está bem entre vocês. A transgressão dele está perdoada.”

Então, enquanto Bata se ajoelhava diante deles, Ra Harakhiti disse para Khnumu, “Faça uma mulher para Bata para que ele não viva só para sempre, uma companheira para sua solidão.” Khnumu fez uma esposa para ele. Ela era mais bela do que qualquer outra mulher já havia sido antes. Os sete Hathors vieram vê-la quando foi criada e eles exclamaram num acorde: “Ela morrerá uma morte chocante, embora a essência de todos os deuses esteja nela!”

Bata caçava o dia todo, voltava ao entardecer e depositava tudo que havia conseguido aos pés de sua esposa, pois ele a amava muito. Um dia ele lhe disse “Ouça, preciso alertá-la, jamais chegue muito perto do mar, pois se ele quiser capturar você e levá-la para longe eu não poderei salvá-la, pois minha alma está na flor no alto da acácia e não tenho outro poder além daquele na flor.”

Quando ela ouviu seu segredo sorriu e pensou muito sobre o assunto. No dia seguinte ela foi passear na beira do mar e o mar a viu, e começou a lançar suas altas ondas na direção dela. Ela correu assustada com a paixão do mar, afastando-se dele. Ela entrou em sua casa e o mar chamou a acácia dizendo: “Quero possuir aquela mulher, queria poder levá-la!” Então a acácia levou uma mecha do cabelo que a mulher havia cortado quando estava sentada debaixo da árvore e jogou-o na água. O mar levou a mecha para onde estavam os lavadeiros do Faraó.

Um dos lavadeiros, que estava em pé sobre a areia, pegou a mecha de cabelo. Ela tinha um perfume tão inebriante que ele quase perdeu os sentidos. Ele colocou a mecha entre as roupas que estavam sendo levadas para o Faraó e quando o Faraó sentiu aquele perfume sentiu-se extasiado. “De onde veio essa fragrância rara e maravilhosa?” exclamou o Faraó. “Tragam os sábios para que eles também possam senti-la e me contar.”

Vieram os homens sábios, com seus sinais e portentos, e disseram ao Faraó, “A fragrância é proveniente da mecha de cabelo da filha de Ra Harakhiti, a essência de todos os deuses se encontra nela. Envie mensageiros para o litoral e no vale da acácia ela será encontrada.”

Então o Faraó enviou muitos homens para o vale da acácia e eles tentaram capturar a esposa de Bata, mas ele matou a todos. Nenhum dos homens retornou ao Faraó e este, então, enviou mais homens, desta vez uma cavalaria de fortes soldados, para capturá-la.

Bata teve que deixá-la ir, mas eles não o mataram. Ele ficou só sob a acácia sentindo-se muito angustiado. De alguma forma, ele tentou enviar uma mensagem mental a seu irmão, para lembrá-lo do que havia lhe dito da outra margem do rio de crocodilos na última vez que se viram.

A bela mulher agradou o Faraó imensamente e ele lhe deu tudo o que estava em seu alcance. “Faraó,” disse ela, depois de ter sido presenteada com ouro, joias e os mais raros anéis, “Mande cortar a acácia, pois a alma de meu marido se encontra na sua flor mais alta e eu gostaria que ele estivesse morto.” Então os homens foram e cortaram a árvore do vale, tal que sua flor mais alta, onde se encontrava a alma de Bata, caiu sobre o solo e ele também, caiu morto.

Naquele exato momento alguém entregou a Anpu, o irmão mais velho, um copo de cerveja e o líquido começou a agitar-se quando ele estava prestes a bebê-lo. Ele, então, lembrou-se do que seu irmão lhe havia dito há tanto tempo. Ele pegou seu cajado e suas sandálias, suas roupas de viagem e partiu. Viajou todo o dia e toda a noite e chegou ao vale da acácia. Viu então que a árvore havia
sido cortada e viu o corpo morto de seu irmão. Chorou amargamente e buscou em todos os lugares a flor que continha a alma de seu irmão, mas não consegui encontrá-la. Deitou-se sob a árvore para dormir e disse para si mesmo – “Amanhã, e amanhã, e amanhã eu a buscarei, pois usarei todos os dias de minha vida, se necessário, para encontrar a flor.”

No dia seguinte ele não a encontrou, mas descobriu, num sulco do solo, uma semente. Ele mergulhou a semente num copo d’água e ela brotou. Logo tornou-se a flor que continha a alma de seu irmão. Poucos minutos depois, o corpo de Bata estremeceu sob o pano que lhe cobria e em seguida ele estava em pé, bem e forte diante de Anpu. Eles se abraçaram cheios de alegria, sentaram-se e conversaram juntos por muitas horas.

Então Bata disse a seu irmão, “Pelo favor dos deuses, estou para me tornar um grande touro e você deve montar-me. Quando o sol tiver se levantado três vezes deverei estar no lugar onde minha esposa faz o Faraó de tolo. E, quando eu estiver diante do Faraó, você será levado a ele e ele lhe dará ouro e prata, e outras boas coisas em retorno. Serei considerado por todos uma grande maravilha e você retornará à sua antiga vila como um homem rico.” Em seguida, diante dos olhos de Anpu, ele se transformou em um grande touro, e dentro de três dias eles estavam na presença do Faraó.

O Faraó jamais havia visto tão bela criatura em todos os seus domínios do Alto e Baixo Nilo e então, deu muitos presentes ao irmão mais velho e levou Bata em sua forma de touro para os estábulos reais, onde devia ser tratado em grande estilo. O touro gigante era tão manso que frequentemente era enfeitado com guirlandas de flores pelas damas reais. Um dia, quando sua esposa, agora uma Princesa por ordem do Faraó, aproximou-se dele, o touro lhe falou com sua voz humana, “Estou vivo; os deuses em suas sabedorias, fizeram-me habitar esse corpo maravilhoso de touro.”

Ela estava muito atemorizada e ponderou sobre como poderia livrar-se do marido uma vez mais. Então foi ao Faraó e disse, “Meu senhor, jamais serei feliz enquanto não tiver como remédio o fígado daquela criatura, a qual, estou certa, não serve para mais nada além de ser comida!” Imediatamente o Faraó ordenou que o animal fosse abatido e disse, “Que o fígado seja dado à Princesa, para que ela logo se recupere e fique bem novamente."

Planejou-se uma enorme festa e o touro foi sacrificado aos deuses. Quando estava sendo abatido o touro sacudiu-se e projetou duas gotas de sangue dos ferimentos em seus ombros nas paredes do palácio real. O sangue escorreu em cada lado da porta gigantesca e nos lugares onde o sangue molhou o chão nasceram duas árvores de Persea. Elas cresceram e cresceram, cada dia mais altas e eram ambas perfeitas em todos os sentidos.

Um cortesão foi falar ao Faraó, “Duas árvores gigantes estão crescendo, uma em cada lado da porta grande do palácio; são sinais propícios, ó Faraó!” E houve muito júbilo pelo surgimento dessas árvores. Muitas pessoas levavam oferendas a elas, por terem tido um crescimento miraculoso a partir do sangue do touro. As damas da corte colocavam guirlandas de flores em torno das árvores e oravam para elas.

Quando sua esposa veio, Bata falou-lhe em sua própria voz, a qual ela tão bem conhecia, “Mulher traiçoeira, eu sou Bata, a quem você traiu três vezes. Primeiro foi ao Faraó; depois fez com que cortassem minha árvore-alma e depois pediu pela morte do boi. Agora estou na força dessas árvores, jamais morrerei!”

Então a princesa foi ver o Faraó e lhe disse “Já que você me ama, poderia me fazer um pequeno favor? Não gosto da visão grotesca daquelas duas árvores de Persea, uma em cada lado da grande porta do palácio. Você poderia, por favor, ordenar sejam cortadas, pois elas crescem mais feias a cada dia e um dia irão derrubar o palácio; disso estou certa!”

O Faraó, embriagado de amor por ela, consentiu, e no dia seguinte lenhadores puseram-se a cortar as belas árvores de Persea com muito vigor necessário. A Princesa assistia em pé de não muito longe a essa atividade, com júbilo no coração, quando uma pequena farpa voou para sua boca. Ela ficou tão
espantada que a engoliu. Naquele momento as árvores foram ao chão, no lado de fora dos portões do Palácio.

Depois de nove meses a Princesa deu à luz a um filho e todos no país se regozijaram, pois o Faraó pensava que o filho era seu. Com o passar dos meses o amor do Faraó pelo filho aumentava e ele o criou para que se tornasse o filho real de Kush, herdeiro de todas as terras do Alto e Baixo Nilo. Não muito depois o Faraó morreu. Então, o Príncipe, herdeiro das terras, disse: “Que venham a mim todos os nobres, pois quero contar-lhes tudo que me aconteceu.”

Eles vieram e ele contou-lhes tudo. Seu irmão mais velho foi trazido da vila e foi nomeado ministro da corte. Então trouxeram sua esposa, ela foi julgada e recebeu sua punição. Ele foi rei do Egito por trinta anos e tanto encantou seu povo que seu irmão foi levado ao trono depois de sua morte.