29 agosto 2007

Nasrudin - O Papagaio e o Corvo

Numa linda manhã de domingo, Mulla Nasrudin passeava no mercado.

Qual não foi sua surpresa ao deparar com seu amigo Yussuf: este segurava uma gaiola com um pequeno papagaio, cujo preço de venda era três peças de ouro!

Escandalizado, o Mulla gritou:

-- Yussuf, como se atreve a pedir tal soma por um mísero papagaio?

Yussuf encarou Nasrudin severamente e disse:

-- Fique sabendo, Mullá, que eu peço um preço justo. Este não é um pássaro qualquer: ele fala!

Sem saber o que responder, Mullá seguiu seu caminho.

Uma hora mais tarde, grande foi a surpresa de Yussuf quando viu seu amigo Mullá instalar--se ao seu lado, trazendo uma gaiola com um velho corvo.
Pregado à gaiola, um letreiro anunciava o preço: doze peças de ouro!

-- Ladrão! Escroque! -- gritou Yussuf, vermelho de raiva.
-- Você não tem vergonha de pedir um preço desses por um velho corvo depenado?

-- Não -- respondeu calmamente Mullá Nasrudin. -- É verdade que é um corvo velho, é verdade que ele não fala, mas este não é um pássaro qualquer: ele pensa!

25 agosto 2007

Fátima, a Fiandeira

Numa cidade do mais longínquo Ocidente vivia uma jovem chamada Fátima, filha de um próspero Fiandeiro. Um dia seu pai lhe disse:

- Filha, faremos uma viagem, pois tenho negócios a resolver nas ilhas do Mediterrâneo. Talvez você encontre por lá um jovem atraente, de boa posição, com quem possa e então se casar.

Iniciaram assim sua viagem, indo de ilha em ilha; o pai cuidando de seus negócios, Fátima sonhando com o homem que poderia vir a ser seu marido. Mas um dia, quando se dirigiam a Creta, armou-se uma tempestade e o barco naufragou. Fátima, semiconsciente, foi arrastada pelas ondas até uma praia perto de Alexandria. Seu pai estava morto, e ela ficou inteiramente desamparada.

Podia recordar-se apenas vagamente de sua vida até aquele momento, pois a experiência do naufrágio e o fato de ter ficado exposta às inclemências do mar a tinham deixado completamente exausta e aturdida.

Enquanto vagava pela praia, uma família de tecelões a encontrou. Embora fossem pobres, levaram-na para sua humilde casa e ensinaram-lhe seu ofício. Desse modo Fátima iniciou nova vida e, em um ou dois anos, voltou a ser feliz, reconciliada com sua sorte. Porém um dia, quando estava na praia, um bando de mercadores de escravos desembarcou e levou-a, junto com outros cativos.

Apesar dela se lamentar amargamente de seu destino, eles não demonstraram nenhuma compaixão: levaram-na para Istambul e venderam-na como escrava. Pela segunda vez o mundo da jovem ruira.

Mas quis a sorte que no mercado houvesse poucos compradores na ocasião. Um deles era um homem que procurava escravos para trabalhar em sua serraria, onde fabricava mastros para embarcações.
Ao perceber o ar desolado e o abatimento de Fátima, decidiu comprá-la, pensando que poderia proporcionar-lhe uma vida um pouco melhor do que teria nas mãos de outro comprador.

Ele levou Fátima para casa com a intenção de fazer dela uma criada para sua esposa. Mas ao chegar em casa soube que tinha perdido todo o seu dinheiro quando um carregamento fora capturado por piratas.
Não poderia enfrentar as despesas que lhe davam os empregados, e assim ele, Fátima e sua mulher arcaram sozinhos com a pesada tarefa de fabricar mastros.

Fátima, grata ao seu patrão por tê-la resgatado, trabalhou tanto e tão bem que ele lhe deu a liberdade, e ela passou a ser sua ajudante de confiança. Assim ela chegou a ser relativamente feliz em sua terceira profissão.

Um dia ele lhe disse:

-Fátima, quero que vá a Java, como minha representante, com um carregamento de mastros; procure vendê-los com lucro.

Ela então partiu. Mas quando o barco estava na altura da costa chinesa um tufão o fez naufragar. Mais uma vez Fátima se viu jogada como náufraga em uma praia de um pais desconhecido. De novo chorou amargamente, porque sentia que nada em sua vida acontecia como esperava. Sempre que tudo parecia andar bem alguma coisa acontecia e destruia suas esperanças.

- Por que será - perguntou pela terceira vez - que sempre que tento fazer alguma coisa não da certo? Por que devo passar por tantas desgraças?
Como não obteve respostas, levantou-se da areia e afastou-se da praia.

Acontece que na China ninguém tinha ouvido falar de Fátima ou de seus problemas. Mas existia a lenda de que um dia chegaria certa mulher estrangeira capaz de fazer uma tenda para o imperador. Como naquela época não existia ninguém na China que soubesse fazer tendas, todo mundo aguardava com ansiedade o cumprimento da profecia.

Para ter certeza de que a estrangeira ao chegar não passaria despercebida, uma vez por ano os sucessivos imperadores da China costumavam mandar seus mensageiros a todas as cidades e aldeias do país pedindo que toda mulher estrangeira fosse levada à corte.
Exatamente numa dessas ocasiões, esgotada, Fátima chegou a uma cidade costeira da China. Os habitantes do lugar falaram com ela através de um intérprete e explicaram-lhe que devia ir à presença do imperador.

- Senhora- disse o imperador quando Fátima foi levada ate ele - sabe fabricar uma tenda?
- Acho que sim, Majestade- respondeu a jovem.

Pediu cordas, mas não tinham. Lembrando-se dos seus tempos de fiandeira, Fátima colheu linho e fez as cordas. Depois pediu um tecido resistente, mas os chineses não o tinham do tipo que ela precisava. Então, utilizando sua experiência com os tecelões de Alexandria, fabricou um tecido forte, próprio para tendas. Percebeu que precisava de estacas para a tenda, mas não existiam no país. Lembrando-se do que lhe ensinara o fabricante de mastros em Istambul, Fátima fabricou umas estacas firmes. Quando estas estavam prontas ela puxou de novo pela memória, procurando lembrar-se de todas as tendas que tinha visto em suas viagens. E uma tenda foi construída.

Quando a maravilha foi mostrada ao imperador da China ele se prontificou a satisfazer qualquer desejo que Fátima expressasse.
Ela escolheu morar na China, onde se casou com um belo príncipe, e, rodeada por seus filhos, viveu muito feliz até o fim de seus dias.

Através dessas aventuras Fátima compreendeu que o que em cada ocasião lhe tinha parecido ser uma experiência desagradável acabou sendo parte essencial de sua felicidade.




A Fiandeira Fátima e a Tenda

Esta história é muito conhecida no folclore grego, onde em muitos de seus temas contemporâneos figuram dervixes e suas lendas. A versão aqui apresentada é atribuída ao Xeque Mohamed Jamaludin de Adrianópolis. Fundou a Ordem Jamalia ("A Formosa"), e faleceu em 1750.


Extraído de
'Histórias dos Dervixes'
Idries Shah
Nova Fronteira 1976

23 agosto 2007

A Linguagem dos Pássaros

(Fariduddin Attar)


Um grupo de pássaros desejava encontrar a seu rei; então pediram à poupa sábia (um pássaro com crista em forma de abano) que lhes ajudasse em sua busca. A poupa lhes disse que o rei que estão procurando se chama Simurgh (que significa em persa “Trinta Pássaros”) e que vive escondido na montanha de Kaf, porém é uma viajem muito difícil e perigosa. Os pássaros imploram à poupa que os guie. A poupa aceita e começa a ensinar a cada pássaro de acordo com seu nível e temperamento. Ela lhes diz que para alcançar o alto da montanha, necessitam atravessar cinco vales e dois desertos; quando tiverem passado o segundo deserto, entrarão no palácio do rei.
Os de vontade débil, temerosos da viagem, começam a por desculpas. O louro, que é egocêntrico e egoísta, diz que no lugar de ir em busca do rei, buscará o Santo Gral. O pavão real, a ave legendária do paraíso, exclama que tem sonhado que voltará ao céu e que vai esperar pacientemente esse dia. A pata, se lamenta porque sua vida depende de estar próxima da água e morreria se si separasse dela. A garça tem uma desculpa similar; não lhe é possível viajar longe do mar, porque seu amor pela água é tão grande que, embora permaneça sentado durante anos à sua margem, não tem ousado beber nem uma gota, se não o mar acabaria sem água. A coruja declara que prefere ficar e buscar as ruínas com a esperança de encontrar um tesouro algum dia. O rouxinol diz que não necessita viajar, porque está enamorado da rosa e este amor é suficiente para ele. Possui os segredos do amor que nem outra criatura tem; e com uma voz maravilhosa canta ao amor:
- Conheço os segredos do amor. Toda noite derramo meu canto de amor. A música mística da flauta se inspira em meu lamento, e sou eu quem faz desabrochar a rosa e comover os corações dos namorados. Ensino mistérios com minhas tristes notas, e quem me ouve se perde em êxtase. Ninguém conhece os meus segredos, unicamente a rosa. Tenho me esquecido de mim mesmo e só penso na rosa. Alcançar a Simurgh está acima de mim! O amor da rosa é suficiente para o rouxinol!
A poupa que escutou pacientemente responde ao rouxinol:
- Tu estás preocupado com a forma exterior das coisas, pelos prazeres de uma forma sedutora. O amor da rosa tem lançado espinhos a teu coração. Não importa quão grande seja a beleza da rosa, se desvanecerá em poucos dias; e o amor a algo tão passageiro só pode causar repulsa ao perfeito. Se a rosa te sorri é só para enxerte de dor, porque ela rir-se de ti a cada primavera. Abandona a rosa e seu quente calor.


“O que quer dizer Attar com esta simples conversação? Nós humanos temos o desejo de buscar a perfeição, mas muitas vezes tendemos a parar o processo tão logo detectamos o mais ligeiro sinal de progresso. Isto é especialmente certo nos aspirantes ao caminho espiritual: muitos buscadores estão encantados com as primeiras etapas do despertar e o confundem com a completa iluminação. Attar nos adverte de tais perigos: não devemos confundir o amor do imaginário com o amor do Real. Por esta razão, o rouxinol tem que abandonar seu enganoso apego pela rosa para buscar ao eterno Amado.”


A poupa deleita os pássaros com maravilhosas histórias daqueles que têm feito a perigosa viagem.
Depois de ter ouvido as histórias da poupa, os pássaros estão inspirados para começar sua viajem até o primeiro vale.
Entretanto, logo começam a ter problemas, e se dão conta de que o caminho vai ser mais difícil do que haviam imaginado. Alguns voltam a por desculpas. Um afirma que a poupa não é suficientemente sábia para conduzi-los. Outro se queixa que satanás lhe tem possuído e lhe está pondo as coisas difíceis. E outro expressa seu desejo de ter dinheiro e a comodidade de uma vida de luxo.
Finalmente, a poupa decide que a única forma para que os pássaros compreendam, é descrever-lhes os sete vales e desertos da viajem. O primeiro é o Vale da Busca. Aqui se busca a Verdade com inquietude, diz a poupa. Com constância, se busca um significado maior ao propósito da vida. Só um buscador com dedicação pode atravessar a salvo o primeiro vale e ir ao segundo, o Vale do Amor. Aqui se sente um desejo ilimitado de ver ao Rei Amado. Um fogo abrasador começa a crescer no coração e se faz devastador. O lugar é mais perigoso que o primeiro vale, porque há obstáculos no caminho para por a prova o amor. Entretanto esse mesmo amor impulsiona ao buscador sair do vale e ir até uma terra mais alta: o terceiro vale, o Vale do Conhecimento. Uma vez que se entra nesta terra, o coração se ilumina com a verdade. Se adquire aqui o conhecimento interior do Amado. Deste lugar o viajante continua a viajem ao Vale do Desapego, onde perde seus desejos de possessões mundanas. Não existe ataduras com o mundo material para o viajante que atravessa esse vale; liberado dos desejos agora o aspirante é completamente independente.
Cada novo lugar que o buscador encontra é mais perigoso que o anterior e deve ser explorado passo à passo, porque cada um contém suas próprias provas e dificuldades. Assim, cada encontro com uma terra diferente é uma experiência nova.
O quinto vale é o Vale da Unidade. O viajante experimenta nele que todos os seres são unos em essência, que toda variedade de idéias, experiências e criaturas da vida tem realmente uma só fonte.
O viajante chega ao Deserto do Medo. Então se esquece da existência de si mesmo e de todos os demais. Vê a luz, não com os olhos da mente, sim com os olhos do coração. A porta do divino tesouro, o segredo dos segredos, se abre. Nesta terra, o intelecto já não funciona. Aqui se pergunta ao viajante quem é e o que és, responde: “Não sei nada.”
Finalmente chega ao Deserto do Aniquilamento e da Morte. Neste ponto, o aspirante entende finalmente como uma gota se funde no oceano da unidade com o Amado. Tem encontrado o destino da viajem para encontrar ao rei.
Depois de ouvir a descrição da poupa sobre o que lhes espera, os pássaros se animam tanto que imediatamente continuam sua viajem.
No caminho alguns morrem pelo calor e se jogam no mar. Outros se cansam e não podem continuar; um grupo é caçado por animais selvagens e outros mais se distraem tanto pelo atrativo das terras que atravessam, que se perdem e ficam para trás. Só trinta alcançam seu destino: a montanha de Kaf.
No palácio real, o guarda da entrada trata cruelmente os trinta pássaros. Mas os pássaros, que têm passado o pior, são tolerantes e não se permitem sentir-se molestados por sua dureza. Finalmente, o servidor pessoal do rei sai e conduz os pássaros ao salão real. Ao entrar, os pássaros olham tudo assustados. Não sabem o que ocorre, porque no lugar de ver a Simurgh, “Trinta Pássaros”, tudo o que vêm é... Trinta Pássaros.
Finalmente compreendem que, olhando-se a si mesmos, têm encontrado ao rei, e que em sua busca do rei, têm encontrado a si mesmos.
Os que atravessam as sete cidades do amor se purificam. Quando chegam ao palácio real, encontram ao rei que se revela a seus corações.

(Livro: História de la tierra de los sufíes)