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17 setembro 2018

Como o mal gera o mal


Um eremita caminhava por um lugar deserto quando chegou a uma gruta enorme cuja entrada não era facilmente visível. Decidiu descansar e entrou. Logo notou o brilhante reflexo da luz sobre um monte de ouro.
          Assim que se deu conta do que tinha visto, o eremita começou a correr, fugindo o mais depressa que pôde.
          Aconteceu que havia três ladrões que passavam muito tempo naquele ponto do deserto com a intenção de roubar viajantes. Logo o homem piedoso passou por eles. Os ladrões se surpreenderam, alarmando-se até, vendo o homem correndo sem que ninguém o perseguisse. Sairam do seu esconderijo e detiveram-no, perguntando-lhe o que estava acontecendo.
          - Estou fugindo do diabo, irmãos – disse. – Ele está me perseguindo.
          Os bandidos não conseguiam ver ninguém perseguindo o devoto.
          - Mostra-nos quem está atrás de ti – disseram.
          - Eu o farei – falou o eremita, com medo deles.
          Levou-os em direção a gruta, rogando-lhes que não se aproximassem dela. A essa altura, naturalmente, os ladrões estavam muito curiosos com a advertência e insistiram em ver o motivo de tanto alarme.
          - Aqui está a morte que me perseguia – disse o ermitão.
          Os malfeitores, é claro, ficaram encantados. Evidentemente consideraram o eremita meio louco e o deixaram ir, enquanto se felicitavam por sua boa sorte.
          Em seguida começaram a discutir sobre o que deveriam fazer com sua presa, pois tinham receio de deixar o tesouro novamente só. Decidiram por fim que um deles apanharia um pouco de ouro, iria à cidade, onde o trocaria por comida e outras coisas necessárias, e depois procederiam à divisão.
          Um dos ladrões se apresentou voluntariamente para realizar a missão. Pensou consigo mesmo:
          ‘Quando chegar à cidade poderei comer tudo o que quiser.
Depois envenenarei o resto da comida. Assim os outros dois morrerão, e o tesouro será só meu’.
          Na sua ausência, porém, os outros dois também tinham estado pensando.
          Tinham decidido que, mal o espertalhão regressasse, o matariam. Depois comeriam sua comida e dividiriam o tesouro em duas partes, em vez de três.
          No momento em que o pilantra chegou à gruta com as provisões, os outros dois caíram sobre ele e, a punhaladas, o mataram. A seguir comeram toda a comida, e morreram por causa do veneno que seu companheiro havia posto nela.
          Dessa maneira, como o eremita predissera, o ouro realmente tinha significado a morte para os que tinham deixado se influenciar por ele, e o tesouro permaneceu onde estava, na gruta, por muito tempo.

30 janeiro 2015

Rabia al-Adawiya

Rabia Al-Adawiya, nasceu em circunstâncias humildes, e foi vendida como escrava quando era ainda criança. Mais tarde, fixou residência em Basra onde alcançou grande fama como uma santa e pregadora e foi muito estimada por muitos dos crentes contemporâneos. A data de sua morte é estabelecida entre 752 e 801. A ela é atribuída uma grande parcela na introdução, no misticismo islâmico, do tema do amor divino. Sua tumba costuma ser apontada como estando perto de Jerusalém.


Vida de Rabia

Na noite em que Rabia nasceu, não havia nada na casa de seu pai; pois seu pai vivia em circunstâncias muito modestas. Ele não possuía nem mesmo uma gota de óleo para aplicar em seu umbigo; não havia luz, nem um pedaço de pano para embrulha-la. Ele já tinha três filhas, e Rabia era sua quarta filha; esta é a razão dela às vezes ser chamada assim.

"Vá até o vizinho e implore por uma gota de óleo, para que possamos acender a lamparina," sua mulher disse a ele.

Mas o homem tinha feito uma promessa de que ele nunca iria pedir a um mortal por nada. Então ele saiu, e apenas encostou sua mão na porta do vizinho, e retornou.

"Eles não vão abrir a porta," ele disse.

A pobre mulher chorou amargamente. Naquele estado de ansiedade, o homem colocou sua cabeça sobre seus joelhos e foi dormir. Ele sonhou que estava diante do profeta.

"Não fique triste," o Profeta disse a ele. "A criança que acabou de chegar à terra, será uma rainha entre as mulheres; ela será a intercessora de setenta mil pessoas de minha comunidade. Amanhã," o Profeta acrescentou, "vá até Isa-e Zadan, o governador de Basra. Escreva em um pedaço de papel o seguinte, 'Toda noite você envia para mim uma centena de bênçãos, e às sextas feiras à noite, quatro centenas. A noite passada foi sexta e você me esqueceu. Para reparar isto, dê a este homem quatrocentos dinares adquiridos dentro da lei.'"

O pai de Rabia, ao acordar, rompeu em lágrimas. Ele ergueu-se e escreveu o que o Profeta lhe havia dito, e enviou a mensagem ao governador.

"Dê dois mil dinares aos pobres," o governador ordenou quando viu a carta, "como um agradecimento pelo Mestre ter se lembrado de mim. Dê quatrocentos dinares para o xeique, e diga-lhe, 'Eu desejo que você venha até mim para que eu possa vê-lo. Mas não creio que seja apropriado para um homem como você vir até mim. Melhor seria se eu fosse até você e esfregasse minha barba na soleira de sua porta. No entanto, qualquer coisa que você precisar, avise-me.'"

O homem pegou o ouro e comprou tudo o que era necessário.

Quando Rabia cresceu um pouco, e sua mãe e pai já estavam mortos, a fome chegou à Basra, e suas irmãs se dispersaram. Rabia arriscou-se sozinha e foi vista por um homem perverso que a pegou e a vendou por seis dirhans. Seu comprador a colocou em um trabalho pesado.

Um dia, ela estava passando ao lado de uma estrada quando um estranho se aproximou. Ao correr, Rabia caiu e deslocou sua mão.

"Senhor Deus," ela gritou, curvando sua cabeça em direção ao solo, "Eu sou uma estrangeira, uma órfã, sem pai nem mãe, uma prisioneira abandonada que caiu em cativeiro e minha mão está quebrada. E apesar de tudo isso eu não me aflijo; tudo o que preciso é Teu contentamento, saber se Tu estás satisfeito ou não."

"Não se aflija," ela ouviu uma voz dizer. "Amanhã uma tal estação será tua que até os querubins a invejarão."

Então, Rabia voltou à casa de seu senhor. Durante o dia ela continuava jejuando e servindo a Deus e de noite ela permanecia rezando até o dia seguinte. Uma noite, seu senhor acordou e olhando através da janela de sua casa, viu Rabia ajoelhada e rezando.

"Oh Deus, Tu sabes que o desejo de meu coração está em conformidade com teu comando, e que a luz de meus olhos está em servir Tua corte. Se eu pudesse, eu não descansaria uma hora de estar a Teu serviço; mas Tu Mesmo colocaste-me sob a mão de uma outra pessoa."

Tal era sua litania. Seu senhor percebeu uma lanterna suspensa sem nenhuma corrente sobre sua cabeça, cuja luz iluminava toda a casa. Vendo isto, ele teve medo. Erguendo- se, ele voltou ao seu quarto e refletiu até a aurora. Quando o dia rompeu, ele mandou chamar Rabia, foi gentil com ela e a libertou.

"Dê-me permissão para partir," ela disse.

Ele a deixou partir, e ela saiu da casa e foi para o deserto. Do deserto ela passou a um eremitério onde serviu a Deus por um tempo. Então, ela decidiu fazer a peregrinação, e voltou sua face para o deserto. Ela amarrou sua trouxa em um asno. No coração do deserto, o asno morreu.

"Deixe-nos carregar sua bagagem," os homens que a acompanhavam disseram. "Vocês devem continuar," ela respondeu. "Eu não coloco minha confiança em vocês." Então os homens partiram, e Rabia ficou sozinha.

"Oh Deus," ela disse, erguendo a cabeça, "Tu me convidaste para Tua casa e então, no

meio do caminho Tu causas a morte de meu asno, deixando-me só no deserto."

Mal ela tinha terminado de fazer esta oração quando seu asno suspirou e ergueu-se.

Rabia colocou sua trouxa nas costas dele, e continuou seu caminho. (O narrador desta história afirma que depois, ele viu aquele burrico sendo vendido no mercado.) Ela viajou através do deserto por alguns dias, então ela parou.

"Oh Deus," ela disse, "meu coração está deprimido. Para onde estou indo? Eu, um pedaço de argila e Tua casa, uma pedra! Eu preciso de Ti aqui."

Deus disse em seu coração, "Rabia, tu tens te alimentado no sangue e na vida de dezoito mil mundos. Tu não vistes Moisés rezando por uma visão de Mim? Eu lancei umas poucas partículas de revelação sobre a montanha, e a montanha tremeu em quarenta pedaços. Esteja satisfeita aqui com Meu nome!"

Rabia nunca se casou e nem nunca teve um Xeique para guia-la e instrui-la. Ela recebeu tudo o que ela sabia diretamente de Deus sem o intermédio de um Xeique.

Rabia dizia que existem três tipos de homens. O primeiro acredita que suas mãos e as mãos de seus filhos é tudo o que é necessário para ter sucesso no único mundo que eles conhecem - o mundo material. O segundo tipo reza com suas mãos para que uma recompensa seja adquirida na próxima vida. O terceiro tipo tem suas mãos amarradas em seus punhos, atadas com o amor por servir sem pensar em nenhum retorno.

Sua vida e dizeres tornaram-se fonte de profunda inspiração e desejo por todos aqueles que foram influenciados por ela e que a seguiram, tanto em seu tempo como depois de sua morte. Isto foi devido ao seu amor, manifestando-se diretamente do Espírito e da Face apenas do Amado, sem nenhum traço do eu nele, que trouxe uma fragrância especial do profundo amor secreto para os ensinamentos mais austeros dos primeiros sufis. Ela foi a Palavra que deu vida aos corações daquele povo amado de Deus que seguiu depois dela na mesma linha de amor por Deus, da mesma forma que ela. 

Particularmente, este foi o caso de Abu Bayazid al-Bistami, Abu'l Husayn Nuri,
Husayn ibn Mansur al-Hallaj e Abu Bakr ash-Shibli, que ao redor de seu líder e mestre, Al-Junaid, foram conhecidos como a Escola de Bagdá.

Rabia se referia a um amor que é completamente íntegro, resoluto e paciente, que não se aplica a nada além da Face de Deus, que é o único e verdadeiro Amado. Ele é a oração do coração que apenas testemunha a perfeita união entre Amado e Amante. É dito que Rabia foi a primeira pessoa a ensinar sobre a necessidade pela verdade absoluta e sinceridade no compromisso do amante para com o amado, que é Deus. Ela era uma daquelas referidas como os espiões do coração, pois ela freqüentemente falava claramente contra todos os que afirmavam serem amantes de Deus, mas cujos corações não estavam puros em intenção e devoção. Este era o caso daqueles que não podiam se entregar sem questionamento e completamente ao Desejo do Amado. Ela dizia a eles, "Você se rebela contra Deus, embora pareça ama-Lo. Juro por minha fé que isto é a coisa mais estranha. Pois se seu amor fosse verdadeiro, você O teria obedecido, uma vez que o amante obedece aquele a quem ele ama." Assim, sempre que alguém lhe dizia "Ai de mim, por meus sofrimentos (meus pecados)," ela respondia, "Não minta, mas ao invés disto diga, 'Ai de mim, por minha falta de sofrimento,' pois se você estivesse sofrendo de verdade, a vida não lhe traria tanto prazer." Um de seus companheiros, Sufyan al-Thawri, perguntou-lhe, "Qual é a melhor coisa para um servo fazer quando ele anseia pela proximidade com seu Senhor? Ela disse, "Que o servo não possua nada neste mundo e no próximo, exceto a Ele."

Rabia nunca teve dúvidas sobre seu Amado estar presente ou ausente, porque ela não estava interessada apenas em obter Suas boas graças. Ela vivia por um amor que não busca por nenhuma resposta, recompensa ou reciprocidade. É relatado como, um dia, um de seus seguidores disse em sua presença, "Oh Deus! Possas Tu estar satisfeito conosco!" Rabia disse, "Você não sente vergonha diante Dele de pedir que Ele esteja satisfeito com você, quando você não está satisfeito com Ele?" Com isso ela queria dizer que primeiro devemos estar verdadeiramente satisfeitos com Deus, antes de podermos pedir-Lhe que esteja satisfeito conosco.

Então, a isto seguiu-se a pergunta, "Então, quando o servo está satisfeito com Deus?" Ela respondeu, "Quando seu prazer nas dificuldades é igual ao seu prazer na prosperidade."

Alguém perguntou a ela, "O que é o amor?" Ela respondeu, "O amor vem da Eternidade e a atravessa, e ninguém foi encontrado em setenta mil mundos que beba uma gota dele até que finalmente, ele esteja absorvido em Deus, e é disto que vieram Suas palavras: 'Ele os ama, e eles O amam.'"
Quando Rabia falava, suas palavras manifestavam perfeitamente seu amor, sua crença e fé, pois ela estava totalmente imersa em seu Senhor de tal forma que ela se tornava um Luz brilhante que atraia muitas pessoas à sua presença para beber da mesma Fonte da qual ela bebia. Ela disse, "Se eu desejo uma coisa e meu Senhor não, eu deverei ser culpada de descrença." Assim, sua fé vinha de sua total entrega ao Amado, como ela disse, "Eu voei deste mundo e de tudo o que há nele. Minha oração é pela União com Você; esta é minha meta e meu desejo." Assim, uma vez que ela atribuía toda sua doença e dificuldades ao desejo do Amado, como ela poderia opor-se a Ele tentando afastar-se delas?
Uma vez, ouviram-na dizer, "Se Você não tivesse me feito diferente (uma exceção) por causa da aflição, eu não teria aumentado o número de Seus amantes."

Era parte de sua fé que ela desse as boas vindas a um asceticismo que aceitava tudo como sendo um presente de Deus, o Amante do escravo amado. Assim, ela estimava as dificuldades da mesma forma que estimava os favores e a alegria, e isto era para ela, o compromisso fundamental. Sobre isso, ela disse, "Você me deu a vida e foi meu provedor, e Sua é a Glória." E acrescentou, "Você me concedeu muitos favores e presentes. Graças e ajuda." Desta forma, ela reconhecia seu compromisso com o Doador e Provedor de toda a Bondade.

O único objeto da vida de Rabia estava associado com seu desejo e amor apaixonado por seu Amado, que não significava meramente a destruição de seu self (nafs) mas a entrega a Deus a cada momento em uma união perfeita na qual não há Senhor nem escravo, nem Criador nem criatura, apenas Ele. Neste estado ela percebeu que ela existia Nele sem nenhuma possibilidade de separação de Sua Unicidade indivisível.

A chave para seu estado alcançado e a vida apaixonada pela Presença de seu Senhor era sua constante oração, lembrança e pedido por perdão por todas suas imperfeições, e um conhecimento de que sua união com seu Amado poderia não vir da forma como ela desejava, mas apenas da forma como Ele desejava para ela. Ela estava também bem consciente de que a lembrança e arrependimento não vinham dela mesma, mas Dele, seu Deus Amado. É dito que alguém disse a ela, "Eu cometi muitos pecados, se eu me voltar em arrependimento para Deus, Ele irá voltar sua misericórdia para mim?" Ela disse, Não, mas se Ele se voltar para você, você se voltará para Ele." 

Para Rabia, o arrependimento era um presente de Deus. Como ela disse, "Buscar o perdão com a língua é o pecado da mentira. Se eu buscar arrependimento por mim mesma, eu não terei necessidade de me arrepender de novo." Ou, como ela também disse, "Nosso pedido pelo perdão de Deus também precisa ser perdoado."

Histórias sobre Rabia

Uma noite, Rabia estava rezando no eremitério quando foi tomada por fraqueza e adormeceu. Tão profundamente ela foi absorvida, que quando um junco da moita de juncos onde ela dormia, quebrou e feriu seu olho tirando-lhe sangue, ela nem notou.

Um ladrão entrou e pegou seu chaddur. Ele então tentou partir, mas seu caminho foi barrado. Ele deixou cair o chaddur e partiu, encontrando o caminho agora livre. Ele pegou o chaddur de novo e retornou, apenas para descobrir seu caminho bloqueado. Uma vez mais ele deixou o chaddur cair. Ele repetiu isto sete vezes; então ouviu uma voz vinda do canto do eremitério,
"Homem, não se envolva com tal ato. Já fazem muitos anos que ela assumiu um compromisso Conosco. O próprio Diabo não tem coragem para atrever-se a aproximar- se dela. Como poderia um ladrão ter a coragem para atrever-se a se aproximar de seu chaddur? Vá embora, patife! Não se dê a esse tipo de trabalho. Se um amigo dormiu, o Amigo permanece acordado vigiando."

Dois notáveis da Fé vieram visitar Rabia e estavam famintos.

"É provável que ela nos dê comida," eles disseram um ao outro. "Sua comida, é garantido, vem de uma fonte legal (dentro da lei)."

Quando eles se sentaram, havia um guardanapo com dois pães diante deles. Eles ficaram satisfeitos. Nesse exato momento, um mendigo chegou, e Rabia deu a ele os dois pães. Os dois homens ficaram muito tristes, mas não disseram nada. Depois de um tempo, uma serva entrou com um punhado de pães quentes.

"Minha senhora mandou a ti estes pães," ela explicou.

Rabia contou os pães. Havia dezoito deles.


"Talvez não seja isso que ela me enviou," Rabia afirmou.
Por mais que a serva afirmasse o contrário, de nada adiantou. Então ela pegou os pães

de volta e levou-os embora. O que havia acontecido é que ela havia pego dois pães para si mesma. Ela contou isso à sua senhora, e esta repôs os dois pães e a serva retornou à
casa de Rabia com todos eles. Rabia contou-os novamente, e encontrou vinte pães. Então elas os aceitou.

"Isto é o que sua senhora me enviou," ela disse.

Ela colocou os pães diante dos homens e eles os comeram, maravilhados.
"Qual o segredo por trás disto?" eles perguntaram. "Nós queríamos seus próprios pães

mas você os deu ao mendigo. Então, você disse que os dezoito pães não lhe pertenciam. Quando eles eram vinte, você os aceitou."

"Quando vocês chegaram, eu sabia que vocês estavam com fome," Rabia explicou. "Eu disse a mim mesma, Como posso oferecer dois pães a dois notáveis? Então o mendigo chegou à porta e eu dei a ele os pães e disse para Deus Todo Poderoso, 'Oh Deus, Tu disseste que Tu devolve tudo multiplicado por dez, e eu acredito nisto firmemente. Eu dei dois pães para agradar a Ti, então Tu deves dar-me vinte em retorno por eles.' Quando chegaram dezoito pães, eu soube que tinha havido alguma apropriação indevida, ou que os pães não eram para mim."

Um dia a moça que servia Rabia estava preparando uma sopa de cebola, pois já fazia vários dias desde que elas haviam preparado alguma comida. Achando que ela precisava de algumas cebolas, ela disse.

"Eu irei pedir no vizinho."

"Já fazem quarenta anos," Rabia respondeu, "que eu fiz uma aliança com Deus Todo Poderoso, de forma que não peço nada a ninguém, exceto a Ele. Não se incomode com as cebolas."

Imediatamente, um pássaro precipitou-se para baixo, com um cordão de cebolas em seu bico e o deixou cair dentro da panela.

"Não estou certa de que isto não seja uma armadilha," Rabia comentou. Ela deixou as cebolas de lado, e comeu nada mais além de pão.

Um dia, Rabia passou pela casa de Hasan (de Basra). Hasan estava apoiado em sua janela e estava chorando; suas lágrimas caíram no vestido de Rabia. Olhando para cima, ela pensou que estava chovendo; então, percebendo que eram as lágrimas de Hasan, ela voltou-se para ele e disse-lhe,
"Senhor, este choro é sinal de languidez espiritual. Guarde suas lágrimas, de tal forma que possa surgir dentro de você uma tal oceano que, ao buscar teu coração, você o encontrará apenas na vigília do Rei Onipotente."

Essas palavras perturbaram Hasan, mas ele manteve sua paz. Então, um dia, ele viu Rabia quando ela estava perto do lago. Jogando seu tapete de oração sobre a superfície da água, ele a chamou,
"Venha Rabia! Vamos rezar dois rakas aqui!"

"Hasan," Rabia respondeu, "quando você demonstra teus bens espirituais neste mercado mundano, devem ser coisas que os outros homens sejam incapazes de demonstrar."
Então ela lançou seu tapete de orações no ar, e voou sobre ele,
"Venha aqui em cima Hasan, onde as pessoas possam nos ver!" Ela disse.
Hasan que não havia atingido esta estação, não disse nada. Rabia o consolou. "Hasan," ela disse, "o que você fez, os peixes também fazem, e o que eu fiz, os insetos 
também fazem. Os afazeres reais estão além desses truques. As pessoas devem se aplicar aos afazeres reais."

Uma vez, Rabia deu a Hasan três coisas - um pedaço de cera, uma agulha e um fio de cabelo.
"Seja como a cera," ela disse. "ilumine o mundo, e queime a você mesmo. Seja como uma agulha, sempre trabalho desnudo. Quando você tiver feito estas duas coisas, mil anos serão para você como um fio de cabelo."

"Você deseja que nos casemos?" Hasan perguntou a Rabia.
"A junção no casamento aplica-se aqueles que têm um ser," Rabia respondeu. "Aqui o ser desapareceu, pois eu me tornei vazia de um self e existo apenas através Dele. Eu pertenço completamente a Ele. Eu vivo na sombra de Seu controle. Você deve pedir minha mão para Ele, não para mim."

"Como você encontrou este segredo, Rabia?" Hasan perguntou.
"Eu perdi Nele todas as coisas 'encontradas'," Rabia respondeu. "Como você veio a conhecê-Lo?"
"Você sabe sobre o 'como'; eu sei a 'ausência do como'," Rabia disse.


Uma vez, Rabia viu um homem com uma bandagem amarrada em sua cabeça. "Por que você amarrou essa bandagem?" ela perguntou.
"Porque minha cabeça dói," o homem respondeu.
"Quantos anos você tem?" ela perguntou.

"Trinta."
"Você sentiu dor e angústia a maior parte de sua vida?" ela perguntou.
"Não."
"Por trinta anos você desfrutou de uma boa saúde," ela afirmou, "e você nunca

amarrou uma bandagem de gratidão por isto. Agora, por causa de uma noite onde você tem dor de cabeça, você amarra a bandagem da queixa!"

Um dia de primavera, Rabia entrou em sua casa.
"Senhora," sua serva disse, "venha aqui fora e veja o que o Fazedor forjou."
"Melhor seria se você entrasse," Rabia respondeu. "e visse o Fazedor. A contemplação

do Fazedor é o que me preocupa, assim eu não me importo com o que Ele faz."
Uma vez, Rabia jejuou por uma semana inteira, sem comer nem dormir. Toda noite ela se ocupava com orações. Sua fome ultrapassou todos os limites. Um visitante entrou em sua casa trazendo uma tigela de comida. Rabia a aceitou e foi acender uma lamparina. Quando ela retornou, ela viu que um gato havia comido a comida.
"Eu trarei um jarro e então, quebrarei meu jejum com água," ela disse.
Quando ela trouxe a água, a lamparina havia apagado. Ela tentou beber a água no escuro, mas o jarro escorregou de suas mãos e quebrou. Ela lamentou e suspirou tão ardentemente que temeu-se que metade da casa fosse consumida pelo fogo.
"Oh Deus," ela disse, "o que é isto que Tu estás fazendo com esta Tua serva desamparada?"
"Tome cuidado," uma voz veio a seus ouvidos, "a menos que tu desejes que Eu outorgue a ti todas as bênçãos do mundo, mas erradique de teu coração o interesse por Mim. O interesse por Mim e pelas bênçãos do mundo não podem nunca estar associados em um só coração. Rabia, tu desejas uma coisa, e Eu, outra; Meu desejo e teu desejo não podem nunca ser unidos num só coração."
"Quando ouvi esta admoestação," Rabia disse, "eu cortei meu coração para fora do mundo e reduzi meus desejos de forma que, sempre quando rezei nestes últimos trinta anos, assumi que aquela era minha última oração."

Uma vez, Rabia adoeceu gravemente. Foi-lhe perguntado qual poderia ser a causa. "Eu contemplei o Paraíso," ela respondeu, "e meu Senhor me disciplinou."

Então Hasan de Basra foi visitá-la. Ele disse:
"Eu vi um dos notáveis de Basra à porta do eremitério de Rabia oferecendo-lhe uma bolsa de ouro e chorando. Eu disse, 'Senhor, por que você está chorando?' 'Por causa desta mulher santificada,' ele respondeu. 'Pois se a bênção de sua presença desaparecer do meio do gênero humano, o gênero humano irá certamente perecer. Eu trouxe algo para que ela fosse medicada,' ele acrescentou, 'e temo que ela não aceite. Você pode interceder para que ela aceite?'"
Então, Hasan entrou e falou com Rabia. Ela olhou para ele e disse:
"Ele é o provedor daqueles que O insultam; como não seria Ele o provedor para os que O amam? Desde que O conheço, eu virei minhas costas para Suas criaturas. Não sei quando a propriedade de um homem está de acordo com a lei ou não; como posso aceita-la? Eu costurei, através da lâmpada de uma lamparina do mundo, uma blusa que rasguei. Por um tempo, meu coração me obstruiu, até que me recordei. Então, eu rasguei a blusa no lugar onde havia costurado e meu coração se expandiu. Peça ao cavalheiro para rezar para que meu coração não permaneça obstruído."

Abd al-Wahed-e Amer relatou o seguinte.
Eu fui, junto com Sofyan-e Thauri, visitar Rabia quando ela adoeceu, mas cheio de tristeza por ela, não pude lhe falar.
"Diga algo você," eu disse a Sofyan.
"Se você disser uma oração," Sofyan disse a Rabia, "sua dor irá parar."
"Você sabe quem desejou que eu sofresse? Não foi o próprio Deus?" Rabia perguntou. "Sim," Sofyan concordou.
"Como é então que, sabendo disso," Rabia continuou, "você sugere que eu peça a Ele

algo que é contrário ao Seu desejo? Não é errado opor-se ao Amigo?"
"O que você deseja, Rabia?" Sofyan perguntou.
"Sofyan, você é um homem educado. Por que você fala assim? Pela glória de Deus,"

Rabia afirmou, "por doze anos eu tenho desejado comer tâmaras frescas. Você sabe que aqui em Basra é fácil conseguir tâmaras. Mas até agora eu não comi nenhuma; pois eu sou Sua serva, e o que tem a ver uma serva com desejos? Se eu quiser, e meu Senhor não, isto será infidelidade. Você deve desejar apenas o que Ele deseja, para ser um servo real de Deus. Se Ele mesmo oferecer, então será diferente."
Sofyan reduziu-se ao silêncio. Então ele disse,
"Uma vez que não se pode falar sobre sua situação, diga algo você sobre a minha." "Você é um bom homem, mas você ama o mundo,' Rabia replicou. "Você adora 
recitar as Tradições."
Ela disse isso implicando que ele estava em uma posição elevada.
"Senhor Deus," gritou Sofyan, profundamente alterado, "esteja satisfeito comigo!" "Você não tem vergonha," irrompeu Rabia, "em buscar a satisfação Daquele com 
quem você mesmo não está satisfeito?"

Malik Dinar conta a seguinte história:
Eu fui visitar Rabia e a vi com um jarro quebrado com o qual ela bebia e fazia suas abluções rituais, uma esteira velha de junco e um tijolo que ocasionalmente ela usava como travesseiro. Eu fiquei consternado.
"Eu tenho amigos ricos," eu disse a ela. "Se você quiser, conseguirei algo com eles para você."
"Malik, você cometeu um erro sério," ela respondeu. "O meu Provedor e o deles não é o mesmo?"
"Sim," eu respondi.
"E o Provedor dos pobres tem esquecido os pobres por causa da pobreza deles? E tem Ele se lembrado dos ricos por causa da riqueza deles?" ela perguntou.
"Não," eu respondi.
"Então," ela continuou, "uma vez que Ele conhece meu estado, como devo lembrar- Lhe? Este é o desejo Dele, e eu também desejo o que Ele deseja."
Um dia Hasan de Basra, Malik Dinar e Saqhiq Balkhi foram visitar Rabia que estava acamada.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que suporta com coragem o castigo de seu Senhor," começou Hasan.
"Estas palavras cheiram a egoísmo," Rabia comentou.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que agradece pelo castigo de seu Senhor," Shaqhiq disse.
"Nós precisamos de algo melhor que isso," Rabia observou.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que se delicia com o castigo de seu Senhor," afirmou Malik Dinar.
"Nós precisamos de algo melhor que isso," Rabia repetiu.
"Então, diga você," eles pediram.
"É verdadeiro em sua afirmação aquele que esquece de seu castigo na contemplação

de seu Senhor," Rabia disse.

Um importante estudioso de Basra visitou Rabia quando ela estava acamada. Sentado perto de seu travesseiro, ele insultou o mundo.
"Você ama o mundo com todo seu coração," Rabia comentou. "Se você não amasse o mundo, você não o mencionaria tanto. É sempre o comprador que deprecia as mercadorias. Se você não tivesse nada a ver com o mundo, você não o mencionaria, seja de forma positiva ou negativa. Do jeito que as coisas são para você, você permanece mencionando-o porque, como o provérbio diz, aquele que ama algo o menciona freqüentemente."

É dito que Rabia foi vista uma vez, carregando uma tocha de fogo em uma mão e um jarro com água em outra, e que ela corria muito rápido. Quando lhe perguntaram o que ela estava fazendo e onde estava indo, ela disse, "Estou indo acender o fogo no Jardim e jogar a água sobre ele, de tal forma que ambos estes véus desapareçam dos buscadores, e que seus propósitos possam ser corretos, e que os escravos de Deus possam vê-Lo, sem nenhum objeto de esperança ou movimento nascido do medo. O que aconteceria se a Esperança pelo Jardim do Paraíso e o medo pelo Fogo do Inferno não existissem? Ninguém iria adorar seu Senhor, nem obedece-lo. Mas Ele é digno da adoração sem qualquer motivo ou necessidade imediatos."

Existe uma história relacionada a Rabia onde ela uma vez disse, "Eu rezei para Deus uma noite com as orações do amanhecer, então eu dormi e vi uma árvore verde e brilhante, indescritível em beleza e tamanho, e nela havia três tipos de frutas, desconhecidas para mim, como seios de virgens, brancas, vermelhas e amarelas, e elas brilhavam como esferas e sóis nos espaços verdes da árvore. Eu as admirei e disse, 'O que é isso?' Então, alguém respondeu, 'Isto é para você, por suas orações antes da hora.' Então eu comecei a caminhar em volta da árvore e vi que, sob ela havia dezoito frutas caídas no chão, da cor do ouro, e eu disse, 'Se estas frutas estivessem com as outras na árvore, seria melhor.' Aquela voz me disse, 'Elas estariam lá se você, quando ofereceu suas preces, não tivesse se perguntado "estará o pão fermentando ou não?" Assim,
aquelas frutas caíram. Este é um aviso para aqueles que compreendem, e uma exortação para aqueles que temem a Deus e O adoram.'"

Uma vez Rabia estava fazendo a peregrinação e quando ela alcançou o Arafat ela ouviu uma voz que lhe dizia, "Oh tu que me buscas, qual requisição tu fazes a Mim? Se é a Mim Mesmo que você deseja, então eu irei mostrar um flash de Minha Glória, mas nisto, você será absorvida e derreterá." Então ela disse, "Oh Deus da Glória. Rabia não tem meios de atingir este degrau, mas eu desejo uma partícula da Pobreza." A voz disse, "Oh Rabia. A Pobreza é a seca e a fome de Nossa Ira que temos colocado no caminho dos homens. Quando nada além de um fio de cabelo permanece entre eles e a união Conosco, tudo é mudado e a união se torna separação. Quanto a você, você ainda tem setenta véus de existência, e até que você venha para fora destes véus, você não se beneficiará sequer em falar daquela Pobreza."

Orações de Rabia

Oh Deus, o que quer que Tu tenhas designado para mim das coisas mundanas, dê-as para Teus inimigos; e o que quer que Tu tenhas designado para mim no mundo do porvir, dê-as para Teus amigos; pois para mim, Tu és o bastante.

Oh Deus, se eu rezar a Ti por medo do inferno, me queime no inferno, e se eu rezar a Ti esperando pelo paraíso, me exclua do paraíso; mas se eu rezar a Ti apenas por Ti, não relute em me conceder tua beleza eterna.

Oh Deus, minha única ocupação e todo o meu desejo neste mundo, entre todas as coisas mundanas, é me lembrar de Ti, e no mundo do porvir, entre todas as coisas deste mundo, é encontrar a Ti. Isto é o que tem relação comigo; agora, Tu, facas o que Tu desejares.

Minha paz está na solidão, mas meu Amado está sempre comigo. Onde quer que eu contemple Sua Beleza, este ponto é meu nicho de oração (mihrab), em sua direção está minha qibla. Oh Tu, que cura as almas, o coração alimenta-se no desejo por Ti e a luta em busca da união contigo curou minha alma. Tu és minha alegria e vida eternas. Tu és a fonte de minha vida; de Ti vem o êxtase. Eu me separei de todos os seres criados, pois minha esperança está na união contigo; pois esta é a meta de minha busca.

Eu amo a Ti com dois amores - um amor egoísta
E um amor do qual Tu és digno.
Em relação ao amor egoísta, ele é aquilo que eu penso de Ti,
Em exclusão a todo o resto.
Em relação ao amor do qual Tu és digno,
Ah! Eu não mais vejo criatura alguma, apenas a Ti!
Não existe nenhum louvor para mim em nenhum destes dois amores, Mas o louvor em ambos é para Ti.


Oh Deus, a noite passou e o dia amanheceu. Como eu desejo saber se Você aceitou minhas preces ou se as rejeitou! Portanto, me consola, pois cabe a Ti consolar este meu estado. Você me deu a vida e cuidou de mim, e Tua é a Glória. Se Você quiser me afastar de Sua Porta ainda assim eu não irei abandona-la por causa do amor que eu mantenho em meu coração por Você.


Fonte: Faradudin Attar. Memorial of the saints.

27 abril 2014

A Sorte de Catarina

Há muito tempo atrás, viveu um mercador muito rico e generoso, que possuía um palácio deslumbrante. O orgulho de sua vida era sua filha, uma linda criatura chamada Catarina. Catarina era alta e magra, com cabelos negros e olhos grandes e brilhantes. Suas mãos e seus pés eram pequenos e delicados, sua pele tão macia como as pétalas de uma rosa. No palácio havia tronos de ouro, turquesas enfeitavam cadeiras de prata, rubis as molduras dos quadros e diamantes as fontes de água. Tudo ao redor de Catarina era luxo e beleza. Pavões passeavam pelos jardins, flores desabrochavam em vasos pendurados nas árvores, em suma, o melhor que o dinheiro podia comprar. Um dia, quando Catarina estava andando pelo jardim, vestida numa longa túnica de seda bordada em finíssimas pérolas, com um capuz do qual pendiam outras tantas fileiras de pérolas, uma dama de aparência elegante surgiu à sua frente. Havia algo de notável nessa mulher, seus olhos eram muito penetrantes e escuros, suas roupas pareciam não ser nada além de cortinas luminosas. - Catarina, minha querida criança, disse a dama, o que você prefere: gostaria de gozar sua vida na sua juventude ou gostaria de gozá-la na sua velhice? Você tem somente essas duas escolhas. Catarina pensou por um momento e então falou: - Se eu tiver o meu prazer agora, sofrerei por isto nos meus últimos anos? E a dama alta respondeu: Sim. - Mas como é que você sabe ? perguntou Catarina, que continuava a ponderar sobre a questão. - Porque eu sou a sua Sorte, respondeu a aparição. - Oh, então eu terei a minha boa fortuna na minha velhice, disse Catarina. - Muito bem, que assim seja, disse a sua Sorte, e desapareceu. Catarina nada pensou a respeito desse encontro e retornou até sua casa para trocar suas roupas por outras ainda mais finas. Mas alguns dias depois algumas coisas terríveis começaram a acontecer. Uma grande tempestade se abateu sobre o mar. O pai de Catarina estava esperando seus navios voltarem de um país estrangeiro, carregados de ricas mercadorias, mas todos eles foram mandados para o fundo do oceano pela tormenta. Seus armazéns foram queimados por um misterioso fogo; então, quando ele decidiu preparar novos navios, nada havia para colocar dentro deles. Ele alugou seus barcos a um duque, que queria acompanhar um príncipe que seguia para a guerra, mas todas as naus foram afundadas num encontro com piratas. Os homens do duque foram mortos e o próprio duque ficou sem um tostão. Ladrões arrombaram a casa e roubaram todas as joias de Catarina; suas roupas foram então vendidas para que eles tivessem o que comer por mais algum tempo. Por fim, infeliz e doente, o pai de Catarina morreu, deixando-a só no mundo. Sem dinheiro e com roupas muito simples, Catarina decidiu abandonar essa cidade que havia lhe trazido tanta má sorte e encontrar, se possível, algum trabalho num outro lugar. Então ela disse adeus à cidade onde nascera e começou sua longa e penosa marcha. Finalmente alcançou uma aristocrática cidade longe de seu próprio país, e parou um instante no meio da rua, imaginando aonde ir. Tinha um pouco de dinheiro, que uma antiga ama havia lhe dado, e estava pensando aonde poderia comprar um pouco de pão. Uma senhora de boa posição, olhando para fora de sua janela, viu-a e chamou-a: - Quem é você, minha querida, e de onde vêm? Você não é dessa parte do mundo. - Senhora; estou sozinha no mundo, pois meu pai, que um dia foi um rico mercador, morreu. Procuro um lugar onde possa comprar um pouco de pão. - Venha para minha casa, eu preciso de uma criada e você desempenhará essa função muito bem, disse a nobre senhora; e Catarina entrou agradecida na enorme construção. A senhora afeiçoou-se muito a ela, e lhe confiava todos os seus bens. Um dia a dona da casa lhe disse: - Preciso sair por um momento; feche bem a porta e não deixe ninguém entrar ou sair até que eu volte. Então Catarina fechou a porta e sentou-se perto do fogo. Mas a nobre senhora havia saído, a porta se abriu e sua Sorte entrou. - Olhe, aí está você, Catarina! Gritou sua Sorte asperamente. - Arranjou um bom lugar para ficar, não é mesmo? Bem, você não pode escapar de mim dessa maneira, sabe... E começou a atirar no chão todos os objetos de valor da dona da casa, quebrando vidros e porcelanas, rasgando em pedaços linhos caríssimos. - Oh, não, não, não!!! Gritou Catarina. - Isso vai me causar problemas terríveis! A senhora confia em mim!! - Ela confia? Zombou sua sorte. - Bem, então explique isso quando ela voltar... E transformou a longas cortinas de seda em farrapos. Catarina colocou as mãos no rosto e fugiu, correndo da casa, sem nunca olhar para trás, no caso de sua sorte estar lhe seguindo. Mal ela acabara de sair, sua Sorte colocou tudo novamente como estava antes e desapareceu. Quando a senhora retornou, a casa estava perfeitamente arrumada, mas Catarina tinha ido embora. A senhora chamou e chamou, mas claro que a pobre garota não ouviu, pois estava já muito longe. A dama examinou tudo, pensando que talvez Catarina a tivesse roubado, mas nada estava lhe faltando. Ela não podia entender o que acontecera, pois a garota parecia ser de toda confiança. Ora, a pobre Catarina correu até alcançar outra cidade e, ao procurar um lugar onde pudesse comprar um pouco de pão, outra senhora que estava parada na janela a notou. A dama abriu a janela e lhe falou: - De onde você é e o que faz neste lugar, já que é obvio que está perdida? - Sou uma pobre garota de longe e procuro algo para comer, pois tenho muita fome, respondeu Catarina. - Bem, venha para minha casa, disse a dama. - Eu vou alimentá-la, vesti-la, e arranjar-lhe um lugar entre a minha criadagem. Então, Catarina entrou. Mas a mesma coisa aconteceu, como antes. Assim que ela se estabeleceu na casa e todos os valores lhe foram confiados, sua Sorte apareceu e criou o caos em apenas alguns segundos. - Você pensa que há algum lugar nesse mundo onde eu não seja capaz de encontrá-la ? gritou sua sorte asperamente, derrubando frascos de incenso de valor incalculável que se espatifaram no chão. Catarina colocou as mãos no rosto e correu. E assim foi durante sete anos. Cada vez que Catarina era acolhida por alguma simpática senhora, o aparecimento de sua Sorte fazia com que ela tivesse que partir em viagem, infinitamente, parecia-lhe. Mas ela nunca conseguia escapar por muito tempo. Porém, - e isto Catarina não sabia – sua Sorte sempre restaurava tudo à antiga forma, no mesmo minuto em que Catarina desaparecia. Bem, sete anos se passaram e quando Catarina estava trabalhando para uma senhora nobre, muito bondosa de coração, parecia que sua Sorte quase havia se esquecido dela. Dia após dia Catarina cuidava da casa, e tudo dava certo para ela. No entanto, a tensão era muito grande, pois a cada hora ela esperava que a porta se abrisse e sua Sorte aparecesse. Todo dia ela devia ir à montanha para sua patroa, com uma cesta repleta dos mais finos pães e queijos. Uma figura alta e digna pegava a cesta de suas mãos graciosamente a cada dia e, após cumprimentá-la, desaparecia na caverna. Um dia sua senhora patroa lhe disse: - Sempre procuro ganhar as boas graças de minha Sorte dessa maneira. Se eu não lhe enviar pão fresco e queijo, tremo só em pensar o que ela poderia causar-me. Nesse momento, Catarina começou a chorar, incapaz de esconder sua dor, pois ela havia sofrido muito nesses últimos sete anos, e não conseguia continuar escondendo sua tristeza. - Minha querida criança, o que está acontecendo com você? Conte-me logo! Gritou a nobre senhora, colocando sua mão no ombro de Catarina. Então Catarina contou-lhe a história da crueldade de sua sorte, e completou: - Penso que não posso continuar nessa angústia, esperando que ela apareça a qualquer momento e transforme tudo em pedaços, como já fez tantas vezes. Na verdade, quero ir embora daqui logo, pois dessa forma não trarei a destruição de minha sorte para esta casa. - Agora, deixe-me pensar num plano, disse a nobre mulher, balançando a cabeça. - Sim, já sei! Quando você for à montanha levar o pão para minha Sorte, conte-lhe sua história e apele para que ela tenha uma palavrinha com a sua Sorte, para que deixe de atormentá-la dessa maneira. Tenho certeza de que minha Sorte, que é bondosa, ajudará. Assim, no dia seguinte, quando Catarina foi até a montanha levar a cesta para a Sorte de sua senhora, pediu para que ela intercedesse junto à sua própria Sorte. - Bem, sua Sorte está dormindo debaixo de sete cobertores nesse momento, disse a sorte de sua patroa. Mas quando você vier amanhã, eu a levarei junto comigo até ela, pois deve estar acordada. Catarina foi embora cheia de esperanças e dormiu esta noite quase que completamente em paz. Ao levar o pão à montanha na manha seguinte, a Sorte de sua senhora levou-a até a sua própria Sorte, que estava deitada numa grande cama, enfiada até os olhos debaixo de sete cobertores de pena. - Bem, irmã, aqui está Catarina, disse a Sorte de sua nobre senhora. - Pare de atormentá-la desse jeito, deixe-a um pouco em paz agora, eu lhe peço. Sua sorte disse apenas: - Aqui está uma meada de seda, ela lhe será muito útil, cuide dela com carinho. Agora me deixe descansar. E desapareceu debaixo dos cobertores. Intrigada com isso, Catarina voltou para casa. Sua patroa estava ansiosa para saber o que acontecera, mas a história que Catarina lhe contou não parecia ter nem pé nem cabeça. - Essa seda não vale muita coisa, mas é melhor você guardá-la. Ela lhe deve ser útil, como sua Sorte disse, falou a nobre mulher. O rei daquele país, que era jovem e extremamente bonito, estava para se casar. O alfaiate real estava muito constrangido, pois descobriu que, em todo o reino, não se encontrava seda da cor apropriada em quantidade suficiente para costurar o traje de núpcias do rei. - Lancem uma proclamação, disse o Rei. Preciso que minha roupa fique pronta a tempo. Enviem-na aos quatro países que fazem fronteira com meu reino e aos quatro cantos dos meus domínios! Qualquer pessoa que tiver seda dessa cor deve trazê-la até a corte e eu a recompensarei generosamente. A nobre senhora ouviu a proclamação e veio contar para Catarina: - Catarina, minha criança, coloque este vestido e leve esta meada de seda até a corte. É exatamente a cor que o alfaiate está procurando, ela gritou excitada. - Tenho certeza que você será generosamente recompensada. Quando Catarina apareceu na corte e se postou diante do trono, o jovem rei achou-a tão bela que não conseguiu desgrudar os seus olhos daquele rosto. - Sua majestade, disse Catarina, será que esta seda é adequada para seu traje de núpcias? - Você será paga com puro ouro por ela, disse o Rei. Tragam a balança e pesaremos essa meada. Seja qual for o seu peso, você receberá o mais fino ouro do meu reino por ela. Trouxeram a balança, mas não importava quanto ouro fosse colocado, a meada sempre continuava pesando mais. O rei mandou trazer mais balanças, maiores que primeira, e despejou todo seu tesouro nelas, mas a meada de seda continuava pesando mais. Então, no auge da exasperação, e rei tirou a coroa de sua cabeça e colocou-a na balança. No mesmo instante a balança se equilibrou e o rei sorriu. - Onde você conseguiu essa seda, minha querida? Ele perguntou a Catarina. - De minha Patroa, disse Catarina. - Impossível! Gritou o rei. Que tipo de mulher é sua patroa para possuir uma seda mágica como essa? Então Catarina contou ao rei tudo o que havia lhe acontecido, e ele tomou-lhe as mãos entre as suas: - Vou me casar com você em vez de com a jovem à qual eu havia sido prometido. Ele disse e assim aconteceu. Daí em diante, Catarina, que tinha sofrido tanto em sua juventude, viveu até se tornar uma senhora bem velhinha, e foi feliz até o momento de sua morte como rainha desse longínquo país. Extraído de 'World Tales', Idries Shah, Octagon Press.

30 outubro 2010

O Kashkul

Conta-se que um dia um dervixe deteve um rei em plena rua.

- Como te atreves – disse o rei, - tu, um homem insignificante, a interromper os passos de teu soberano?

- E tu - replicou o dervixe, - como podes ser um soberano se nem ao menos consegue encher meu ‘kashkul’, a tigela que uso para mendigar?

Ele ergueu o ‘kashkul’ e o rei ordenou que o enchessem de ouro. Mas à medida que o enchiam de moedas elas desapareciam, e o ‘kashkul’ parecia estar sempre vazio. Trouxeram-lhe fardos de ouro, e a surpreendente tigela os devorava.

- Parem! – gritou o rei. – Este ilusionista está esvaziando meu tesouro.

- Tu achas que estou esvaziando teu tesouro – observou o dervixe, - mas outros acham que estou simplesmente demonstrando uma verdade.

- Que verdade? – perguntou o rei.

- A verdade de que ‘kashkul’ representa os desejos do homem, e o ouro o que se dá ao homem. A capacidade do homem para devorar não tem fim se ele não se transformar. Olha, o ‘kashkul’ comeu quase toda a tua riqueza, mas continua sendo uma casa de coco cortada, não se alterou em nada pela natureza do ouro. Se desejas, entra no ‘kashkul’ – continuou o dervixe. – Ele te devorará também. Como, diante disso, pode um rei pensar que é importante?

Extraído do livro: ”Historias da Tradição Sufi

12 setembro 2007

Poesia de Rumi

Dia 30 de setembro será o 800º aniversário do nascimento de Rumi. Que nasceu em 1207 em Balkh, atual Afeganistão. Abaixo uma pequena amostra de suas poesias (enviado por Arnaldo):

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te.
Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?
Finalmente, foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!
Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
Não durmas,
senta com teus pares
A escuridão oculta a água da vida.
Não te apresses, vasculha o escuro.
Os viajantes noturnos estão plenos de luz;
não te afastes pois da companhia de teus pares.
Faltam-te pés para viajar?
Viaja dentro de ti mesmo,
e reflete, como a mina de rubis,
os raios de sol para fora de ti.
A viagem conduzirá a teu ser,
transmutará teu pó em ouro puro.
Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.
Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.
Oh, dia, levanta! Os átomos dançam,
As almas, loucas de êxtase dançam.
A abóbada celeste, por causa deste Ser, dança,
Ao ouvido te direi aonde a leva sua dança.

Ontem à noite, confidencialmente, eu disse a um velho sábio:
- Não me esconda nada dos segredos do mundo!
Muito docemente, ele me disse ao ouvido:
- Podemos compreender, mas não exprimir!
Quero fugir a cem léguas da razão,
Quero da presença do bem e do mal me liberar.
Detrás do véu existe tanta beleza: lá está meu ser.
Quero me enamorar de mim mesmo, ó vós que não sabeis!
Eu soube enfim que o amor está ligado a mim.
E eu agarro esta cabeleira de mil tranças.
Embora ontem à noite eu estivesse bêbado da taça,
Hoje, eu sou tal, que a taça se embebeda de mim.
Ele chegou... Chegou aquele que nunca partiu;
Esta água nunca faltou a este riacho
Ele é a substância do almíscar e nós o seu perfume,
Alguma vez se viu o almíscar separado de seu cheiro?
Se busco meu coração, o encontro em teu quintal,
Se busco minha alma, não a vejo a não ser nos cachos de teu cabelo.
Se bebo água, quando estou sedento
Vejo na água o reflexo do teu rosto.
Sou medido, ao medir teu amor.
Sou levado, ao levar teu amor.
Não posso comer de dia nem dormir de noite.
Para ser teu amigo
Tornei-me meu próprio inimigo.
Teu amor me tirou de mim.
De ti, preciso de ti
Noite e dia, eu queimo por ti.
De ti, preciso de ti.
Não posso dormir quando estou contigo
por causa de teu amor.
Não posso dormir quando estou sem ti
por causa de meu pranto e gemidos.
Passo as duas noites acordado
mas, que diferença entre uma e outra!
Não temos nada além do amor.
Não temos antes, princípio nem fim.
A alma grita e geme dentro de nós:
- Louco, é assim o amor.
Colhe-me, colhe-me, colhe-me!

À noite, pedi a um velho sábio
que me contasse todos os segredos do universo.
Ele murmurou lentamente em meu ouvido:
- Isto não se pode dizer, isto se aprende.
A fé da religião do Amor é diferente.
A embriaguez do vinho do Amor é diferente.
Tudo que aprendes na escola é diferente.
Tudo que aprendes do Amor é diferente.
- Vem ao jardim na primavera, disseste.
- Aqui estão todas as belezas, o vinho e a luz.
Que posso fazer com tudo isso sem ti?
E, se estás aqui, para que preciso disso?

23 agosto 2007

A Linguagem dos Pássaros

(Fariduddin Attar)


Um grupo de pássaros desejava encontrar a seu rei; então pediram à poupa sábia (um pássaro com crista em forma de abano) que lhes ajudasse em sua busca. A poupa lhes disse que o rei que estão procurando se chama Simurgh (que significa em persa “Trinta Pássaros”) e que vive escondido na montanha de Kaf, porém é uma viajem muito difícil e perigosa. Os pássaros imploram à poupa que os guie. A poupa aceita e começa a ensinar a cada pássaro de acordo com seu nível e temperamento. Ela lhes diz que para alcançar o alto da montanha, necessitam atravessar cinco vales e dois desertos; quando tiverem passado o segundo deserto, entrarão no palácio do rei.
Os de vontade débil, temerosos da viagem, começam a por desculpas. O louro, que é egocêntrico e egoísta, diz que no lugar de ir em busca do rei, buscará o Santo Gral. O pavão real, a ave legendária do paraíso, exclama que tem sonhado que voltará ao céu e que vai esperar pacientemente esse dia. A pata, se lamenta porque sua vida depende de estar próxima da água e morreria se si separasse dela. A garça tem uma desculpa similar; não lhe é possível viajar longe do mar, porque seu amor pela água é tão grande que, embora permaneça sentado durante anos à sua margem, não tem ousado beber nem uma gota, se não o mar acabaria sem água. A coruja declara que prefere ficar e buscar as ruínas com a esperança de encontrar um tesouro algum dia. O rouxinol diz que não necessita viajar, porque está enamorado da rosa e este amor é suficiente para ele. Possui os segredos do amor que nem outra criatura tem; e com uma voz maravilhosa canta ao amor:
- Conheço os segredos do amor. Toda noite derramo meu canto de amor. A música mística da flauta se inspira em meu lamento, e sou eu quem faz desabrochar a rosa e comover os corações dos namorados. Ensino mistérios com minhas tristes notas, e quem me ouve se perde em êxtase. Ninguém conhece os meus segredos, unicamente a rosa. Tenho me esquecido de mim mesmo e só penso na rosa. Alcançar a Simurgh está acima de mim! O amor da rosa é suficiente para o rouxinol!
A poupa que escutou pacientemente responde ao rouxinol:
- Tu estás preocupado com a forma exterior das coisas, pelos prazeres de uma forma sedutora. O amor da rosa tem lançado espinhos a teu coração. Não importa quão grande seja a beleza da rosa, se desvanecerá em poucos dias; e o amor a algo tão passageiro só pode causar repulsa ao perfeito. Se a rosa te sorri é só para enxerte de dor, porque ela rir-se de ti a cada primavera. Abandona a rosa e seu quente calor.


“O que quer dizer Attar com esta simples conversação? Nós humanos temos o desejo de buscar a perfeição, mas muitas vezes tendemos a parar o processo tão logo detectamos o mais ligeiro sinal de progresso. Isto é especialmente certo nos aspirantes ao caminho espiritual: muitos buscadores estão encantados com as primeiras etapas do despertar e o confundem com a completa iluminação. Attar nos adverte de tais perigos: não devemos confundir o amor do imaginário com o amor do Real. Por esta razão, o rouxinol tem que abandonar seu enganoso apego pela rosa para buscar ao eterno Amado.”


A poupa deleita os pássaros com maravilhosas histórias daqueles que têm feito a perigosa viagem.
Depois de ter ouvido as histórias da poupa, os pássaros estão inspirados para começar sua viajem até o primeiro vale.
Entretanto, logo começam a ter problemas, e se dão conta de que o caminho vai ser mais difícil do que haviam imaginado. Alguns voltam a por desculpas. Um afirma que a poupa não é suficientemente sábia para conduzi-los. Outro se queixa que satanás lhe tem possuído e lhe está pondo as coisas difíceis. E outro expressa seu desejo de ter dinheiro e a comodidade de uma vida de luxo.
Finalmente, a poupa decide que a única forma para que os pássaros compreendam, é descrever-lhes os sete vales e desertos da viajem. O primeiro é o Vale da Busca. Aqui se busca a Verdade com inquietude, diz a poupa. Com constância, se busca um significado maior ao propósito da vida. Só um buscador com dedicação pode atravessar a salvo o primeiro vale e ir ao segundo, o Vale do Amor. Aqui se sente um desejo ilimitado de ver ao Rei Amado. Um fogo abrasador começa a crescer no coração e se faz devastador. O lugar é mais perigoso que o primeiro vale, porque há obstáculos no caminho para por a prova o amor. Entretanto esse mesmo amor impulsiona ao buscador sair do vale e ir até uma terra mais alta: o terceiro vale, o Vale do Conhecimento. Uma vez que se entra nesta terra, o coração se ilumina com a verdade. Se adquire aqui o conhecimento interior do Amado. Deste lugar o viajante continua a viajem ao Vale do Desapego, onde perde seus desejos de possessões mundanas. Não existe ataduras com o mundo material para o viajante que atravessa esse vale; liberado dos desejos agora o aspirante é completamente independente.
Cada novo lugar que o buscador encontra é mais perigoso que o anterior e deve ser explorado passo à passo, porque cada um contém suas próprias provas e dificuldades. Assim, cada encontro com uma terra diferente é uma experiência nova.
O quinto vale é o Vale da Unidade. O viajante experimenta nele que todos os seres são unos em essência, que toda variedade de idéias, experiências e criaturas da vida tem realmente uma só fonte.
O viajante chega ao Deserto do Medo. Então se esquece da existência de si mesmo e de todos os demais. Vê a luz, não com os olhos da mente, sim com os olhos do coração. A porta do divino tesouro, o segredo dos segredos, se abre. Nesta terra, o intelecto já não funciona. Aqui se pergunta ao viajante quem é e o que és, responde: “Não sei nada.”
Finalmente chega ao Deserto do Aniquilamento e da Morte. Neste ponto, o aspirante entende finalmente como uma gota se funde no oceano da unidade com o Amado. Tem encontrado o destino da viajem para encontrar ao rei.
Depois de ouvir a descrição da poupa sobre o que lhes espera, os pássaros se animam tanto que imediatamente continuam sua viajem.
No caminho alguns morrem pelo calor e se jogam no mar. Outros se cansam e não podem continuar; um grupo é caçado por animais selvagens e outros mais se distraem tanto pelo atrativo das terras que atravessam, que se perdem e ficam para trás. Só trinta alcançam seu destino: a montanha de Kaf.
No palácio real, o guarda da entrada trata cruelmente os trinta pássaros. Mas os pássaros, que têm passado o pior, são tolerantes e não se permitem sentir-se molestados por sua dureza. Finalmente, o servidor pessoal do rei sai e conduz os pássaros ao salão real. Ao entrar, os pássaros olham tudo assustados. Não sabem o que ocorre, porque no lugar de ver a Simurgh, “Trinta Pássaros”, tudo o que vêm é... Trinta Pássaros.
Finalmente compreendem que, olhando-se a si mesmos, têm encontrado ao rei, e que em sua busca do rei, têm encontrado a si mesmos.
Os que atravessam as sete cidades do amor se purificam. Quando chegam ao palácio real, encontram ao rei que se revela a seus corações.

(Livro: História de la tierra de los sufíes)