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27 abril 2014

A Sorte de Catarina

Há muito tempo atrás, viveu um mercador muito rico e generoso, que possuía um palácio deslumbrante. O orgulho de sua vida era sua filha, uma linda criatura chamada Catarina. Catarina era alta e magra, com cabelos negros e olhos grandes e brilhantes. Suas mãos e seus pés eram pequenos e delicados, sua pele tão macia como as pétalas de uma rosa. No palácio havia tronos de ouro, turquesas enfeitavam cadeiras de prata, rubis as molduras dos quadros e diamantes as fontes de água. Tudo ao redor de Catarina era luxo e beleza. Pavões passeavam pelos jardins, flores desabrochavam em vasos pendurados nas árvores, em suma, o melhor que o dinheiro podia comprar. Um dia, quando Catarina estava andando pelo jardim, vestida numa longa túnica de seda bordada em finíssimas pérolas, com um capuz do qual pendiam outras tantas fileiras de pérolas, uma dama de aparência elegante surgiu à sua frente. Havia algo de notável nessa mulher, seus olhos eram muito penetrantes e escuros, suas roupas pareciam não ser nada além de cortinas luminosas. - Catarina, minha querida criança, disse a dama, o que você prefere: gostaria de gozar sua vida na sua juventude ou gostaria de gozá-la na sua velhice? Você tem somente essas duas escolhas. Catarina pensou por um momento e então falou: - Se eu tiver o meu prazer agora, sofrerei por isto nos meus últimos anos? E a dama alta respondeu: Sim. - Mas como é que você sabe ? perguntou Catarina, que continuava a ponderar sobre a questão. - Porque eu sou a sua Sorte, respondeu a aparição. - Oh, então eu terei a minha boa fortuna na minha velhice, disse Catarina. - Muito bem, que assim seja, disse a sua Sorte, e desapareceu. Catarina nada pensou a respeito desse encontro e retornou até sua casa para trocar suas roupas por outras ainda mais finas. Mas alguns dias depois algumas coisas terríveis começaram a acontecer. Uma grande tempestade se abateu sobre o mar. O pai de Catarina estava esperando seus navios voltarem de um país estrangeiro, carregados de ricas mercadorias, mas todos eles foram mandados para o fundo do oceano pela tormenta. Seus armazéns foram queimados por um misterioso fogo; então, quando ele decidiu preparar novos navios, nada havia para colocar dentro deles. Ele alugou seus barcos a um duque, que queria acompanhar um príncipe que seguia para a guerra, mas todas as naus foram afundadas num encontro com piratas. Os homens do duque foram mortos e o próprio duque ficou sem um tostão. Ladrões arrombaram a casa e roubaram todas as joias de Catarina; suas roupas foram então vendidas para que eles tivessem o que comer por mais algum tempo. Por fim, infeliz e doente, o pai de Catarina morreu, deixando-a só no mundo. Sem dinheiro e com roupas muito simples, Catarina decidiu abandonar essa cidade que havia lhe trazido tanta má sorte e encontrar, se possível, algum trabalho num outro lugar. Então ela disse adeus à cidade onde nascera e começou sua longa e penosa marcha. Finalmente alcançou uma aristocrática cidade longe de seu próprio país, e parou um instante no meio da rua, imaginando aonde ir. Tinha um pouco de dinheiro, que uma antiga ama havia lhe dado, e estava pensando aonde poderia comprar um pouco de pão. Uma senhora de boa posição, olhando para fora de sua janela, viu-a e chamou-a: - Quem é você, minha querida, e de onde vêm? Você não é dessa parte do mundo. - Senhora; estou sozinha no mundo, pois meu pai, que um dia foi um rico mercador, morreu. Procuro um lugar onde possa comprar um pouco de pão. - Venha para minha casa, eu preciso de uma criada e você desempenhará essa função muito bem, disse a nobre senhora; e Catarina entrou agradecida na enorme construção. A senhora afeiçoou-se muito a ela, e lhe confiava todos os seus bens. Um dia a dona da casa lhe disse: - Preciso sair por um momento; feche bem a porta e não deixe ninguém entrar ou sair até que eu volte. Então Catarina fechou a porta e sentou-se perto do fogo. Mas a nobre senhora havia saído, a porta se abriu e sua Sorte entrou. - Olhe, aí está você, Catarina! Gritou sua Sorte asperamente. - Arranjou um bom lugar para ficar, não é mesmo? Bem, você não pode escapar de mim dessa maneira, sabe... E começou a atirar no chão todos os objetos de valor da dona da casa, quebrando vidros e porcelanas, rasgando em pedaços linhos caríssimos. - Oh, não, não, não!!! Gritou Catarina. - Isso vai me causar problemas terríveis! A senhora confia em mim!! - Ela confia? Zombou sua sorte. - Bem, então explique isso quando ela voltar... E transformou a longas cortinas de seda em farrapos. Catarina colocou as mãos no rosto e fugiu, correndo da casa, sem nunca olhar para trás, no caso de sua sorte estar lhe seguindo. Mal ela acabara de sair, sua Sorte colocou tudo novamente como estava antes e desapareceu. Quando a senhora retornou, a casa estava perfeitamente arrumada, mas Catarina tinha ido embora. A senhora chamou e chamou, mas claro que a pobre garota não ouviu, pois estava já muito longe. A dama examinou tudo, pensando que talvez Catarina a tivesse roubado, mas nada estava lhe faltando. Ela não podia entender o que acontecera, pois a garota parecia ser de toda confiança. Ora, a pobre Catarina correu até alcançar outra cidade e, ao procurar um lugar onde pudesse comprar um pouco de pão, outra senhora que estava parada na janela a notou. A dama abriu a janela e lhe falou: - De onde você é e o que faz neste lugar, já que é obvio que está perdida? - Sou uma pobre garota de longe e procuro algo para comer, pois tenho muita fome, respondeu Catarina. - Bem, venha para minha casa, disse a dama. - Eu vou alimentá-la, vesti-la, e arranjar-lhe um lugar entre a minha criadagem. Então, Catarina entrou. Mas a mesma coisa aconteceu, como antes. Assim que ela se estabeleceu na casa e todos os valores lhe foram confiados, sua Sorte apareceu e criou o caos em apenas alguns segundos. - Você pensa que há algum lugar nesse mundo onde eu não seja capaz de encontrá-la ? gritou sua sorte asperamente, derrubando frascos de incenso de valor incalculável que se espatifaram no chão. Catarina colocou as mãos no rosto e correu. E assim foi durante sete anos. Cada vez que Catarina era acolhida por alguma simpática senhora, o aparecimento de sua Sorte fazia com que ela tivesse que partir em viagem, infinitamente, parecia-lhe. Mas ela nunca conseguia escapar por muito tempo. Porém, - e isto Catarina não sabia – sua Sorte sempre restaurava tudo à antiga forma, no mesmo minuto em que Catarina desaparecia. Bem, sete anos se passaram e quando Catarina estava trabalhando para uma senhora nobre, muito bondosa de coração, parecia que sua Sorte quase havia se esquecido dela. Dia após dia Catarina cuidava da casa, e tudo dava certo para ela. No entanto, a tensão era muito grande, pois a cada hora ela esperava que a porta se abrisse e sua Sorte aparecesse. Todo dia ela devia ir à montanha para sua patroa, com uma cesta repleta dos mais finos pães e queijos. Uma figura alta e digna pegava a cesta de suas mãos graciosamente a cada dia e, após cumprimentá-la, desaparecia na caverna. Um dia sua senhora patroa lhe disse: - Sempre procuro ganhar as boas graças de minha Sorte dessa maneira. Se eu não lhe enviar pão fresco e queijo, tremo só em pensar o que ela poderia causar-me. Nesse momento, Catarina começou a chorar, incapaz de esconder sua dor, pois ela havia sofrido muito nesses últimos sete anos, e não conseguia continuar escondendo sua tristeza. - Minha querida criança, o que está acontecendo com você? Conte-me logo! Gritou a nobre senhora, colocando sua mão no ombro de Catarina. Então Catarina contou-lhe a história da crueldade de sua sorte, e completou: - Penso que não posso continuar nessa angústia, esperando que ela apareça a qualquer momento e transforme tudo em pedaços, como já fez tantas vezes. Na verdade, quero ir embora daqui logo, pois dessa forma não trarei a destruição de minha sorte para esta casa. - Agora, deixe-me pensar num plano, disse a nobre mulher, balançando a cabeça. - Sim, já sei! Quando você for à montanha levar o pão para minha Sorte, conte-lhe sua história e apele para que ela tenha uma palavrinha com a sua Sorte, para que deixe de atormentá-la dessa maneira. Tenho certeza de que minha Sorte, que é bondosa, ajudará. Assim, no dia seguinte, quando Catarina foi até a montanha levar a cesta para a Sorte de sua senhora, pediu para que ela intercedesse junto à sua própria Sorte. - Bem, sua Sorte está dormindo debaixo de sete cobertores nesse momento, disse a sorte de sua patroa. Mas quando você vier amanhã, eu a levarei junto comigo até ela, pois deve estar acordada. Catarina foi embora cheia de esperanças e dormiu esta noite quase que completamente em paz. Ao levar o pão à montanha na manha seguinte, a Sorte de sua senhora levou-a até a sua própria Sorte, que estava deitada numa grande cama, enfiada até os olhos debaixo de sete cobertores de pena. - Bem, irmã, aqui está Catarina, disse a Sorte de sua nobre senhora. - Pare de atormentá-la desse jeito, deixe-a um pouco em paz agora, eu lhe peço. Sua sorte disse apenas: - Aqui está uma meada de seda, ela lhe será muito útil, cuide dela com carinho. Agora me deixe descansar. E desapareceu debaixo dos cobertores. Intrigada com isso, Catarina voltou para casa. Sua patroa estava ansiosa para saber o que acontecera, mas a história que Catarina lhe contou não parecia ter nem pé nem cabeça. - Essa seda não vale muita coisa, mas é melhor você guardá-la. Ela lhe deve ser útil, como sua Sorte disse, falou a nobre mulher. O rei daquele país, que era jovem e extremamente bonito, estava para se casar. O alfaiate real estava muito constrangido, pois descobriu que, em todo o reino, não se encontrava seda da cor apropriada em quantidade suficiente para costurar o traje de núpcias do rei. - Lancem uma proclamação, disse o Rei. Preciso que minha roupa fique pronta a tempo. Enviem-na aos quatro países que fazem fronteira com meu reino e aos quatro cantos dos meus domínios! Qualquer pessoa que tiver seda dessa cor deve trazê-la até a corte e eu a recompensarei generosamente. A nobre senhora ouviu a proclamação e veio contar para Catarina: - Catarina, minha criança, coloque este vestido e leve esta meada de seda até a corte. É exatamente a cor que o alfaiate está procurando, ela gritou excitada. - Tenho certeza que você será generosamente recompensada. Quando Catarina apareceu na corte e se postou diante do trono, o jovem rei achou-a tão bela que não conseguiu desgrudar os seus olhos daquele rosto. - Sua majestade, disse Catarina, será que esta seda é adequada para seu traje de núpcias? - Você será paga com puro ouro por ela, disse o Rei. Tragam a balança e pesaremos essa meada. Seja qual for o seu peso, você receberá o mais fino ouro do meu reino por ela. Trouxeram a balança, mas não importava quanto ouro fosse colocado, a meada sempre continuava pesando mais. O rei mandou trazer mais balanças, maiores que primeira, e despejou todo seu tesouro nelas, mas a meada de seda continuava pesando mais. Então, no auge da exasperação, e rei tirou a coroa de sua cabeça e colocou-a na balança. No mesmo instante a balança se equilibrou e o rei sorriu. - Onde você conseguiu essa seda, minha querida? Ele perguntou a Catarina. - De minha Patroa, disse Catarina. - Impossível! Gritou o rei. Que tipo de mulher é sua patroa para possuir uma seda mágica como essa? Então Catarina contou ao rei tudo o que havia lhe acontecido, e ele tomou-lhe as mãos entre as suas: - Vou me casar com você em vez de com a jovem à qual eu havia sido prometido. Ele disse e assim aconteceu. Daí em diante, Catarina, que tinha sofrido tanto em sua juventude, viveu até se tornar uma senhora bem velhinha, e foi feliz até o momento de sua morte como rainha desse longínquo país. Extraído de 'World Tales', Idries Shah, Octagon Press.

31 março 2014

O Jantar do Mágico

Era uma vez um mágico que tinha construído sua casa perto de um próspero vilarejo.

Um dia ele convida toda a população para jantar. “Antes de comer - anuncia ele a seus hóspedes - nós vamos nos divertir um pouco”.

As pessoas ficaram felizes. O mágico apresenta-lhes um número de prestidigitação de primeira linha. 

Os coelhos saltavam das cartolas, echarpes coloridas surgiam do nada, uma coisa se transformava em outra... A platéia estava maravilhada...
Então o mágico lhes pergunta: “Vocês querem jantar agora ou desejariam ver outros truques?”

Todos, unânimes, pedem mais pois eles nunca haviam visto nada igual: comida se tinha em casa, mas eles nunca, em toda a sua vida, haviam vivido nada de tão excitante.

Quando o mágico se metamorfoseia em pombo depois em falcão e, máximo da magia, em dragão, foi um delírio.

Ele novamente lhes faz a mesma pergunta e os cidadãos respondem da mesma forma pois queriam mais. E eles tiveram mais.

Depois ele os pergunta se queriam comer, e eles responderam que sim.

Então o mágico, graças a seus poderes mágicos, os faz crer que eles estavam comendo, desviando as atenções com todo tipo de estratagema.

A comida imaginária e os divertimentos prosseguiram por toda a noite. Quando a aurora se levanta, certas pessoas falaram: “Agora temos que ir trabalhar.”

Então o mágico os fez imaginar que eles voltavam à suas casas, se preparavam para ir ao trabalho e cumpriam efetivamente suas necessidades diárias.

Bem, cada vez que um do seus convidados declarava ter alguma coisa a fazer, o mágico o fazia primeiro acreditar que ele ia fazer, depois que ele havia feito e, finalmente, que ele tinha voltado para casa do mágico.

Este mágico acaba exercendo um tão poderoso domínio sobre os habitantes do vilarejo, que eles só trabalhavam para ele, o mágico, e acreditavam cumprir normalmente suas obrigações diárias. Cada vez que eles ressentiam uma leve inquietude, ele os levava a crer que eles tinham vindo ainda uma vez mais jantar na casa dele e isto os agradava e ao mesmo tempo os fazia esquecer.
E como tudo isto termina?

Acreditem que não posso dizer-vos porque o mágico ainda está muito ocupado no seu papel de  mágico e a maior parte das pessoas estão ainda enfeitiçadas por ele.

24 maio 2013

O lobo e o cão


Um lobo que só tinha pele e osso
Porque na mata andava escasso o pão,
encontra um Dogue forte, ebelto, grosso.
Que errava por ali, por simples distração.
Atacá-lo, deixá-lo despedaçado.
Mestre Lobo o faria de bom grado
Não fosse o medo de apanhar.
Mas queria saber como ele fez,
Qual o processo, o métido a cuidar,
Pra tamanha robustez.
Por isso o aborda, humildemente.
E o cão o atende, cortesmente:
- "Só depende de você, ó senhor Lobo,
Ser tão grande como eu, se belo e forte.
Deixai as matas, não sejais tão bobo,
Somente assim tereis um invejável porte.
Sabeis que não tem vida aquele que não come.
Vossos irmãos, por isso, em louco desatino,
Acabam todos a morrer de fome.
Nesta mata não há comida grátis,
Tudo se obtrém a troco de combates.
Segui-me, vós tereis um bem melhor destino."
E o Lobo perguntou - "Que é preciso que eu faça?"
- Ah!, muito pouco: - respondeu o cão -
Aos de fora, fazer brava ameaça.
Defender os de casa e adular o patrão.
E, em pagamento, vós recebereis
Restos de bóia variada e boa,
Ossos de frango e ossos de leitoa,
Sem falar da carícia que tereis."
O Lobo já vislumbra uma vida encantada
E sonha com comida, e treme de emoção.
Porém durante a caminhada.
Viu que tinha um pelado o pescoço do cão,
E assustado indagou: " Que é isso?" - "Não é nada".
- "Como? Nada? Julgais que nisso posso crer?"
- "A coleira que em mim ficava amarrada
Seria a causa talvez, do que acabais de ver"
- "Preso? Tendes então a liberdade morta?"
Ganhais comida em troca de prisões?
Não sois livre?" - "Nem sempre que importa?"
- "Que importa? - perguntou todo assustado -
Guardai as vossas ricas refeições
Porque prefiro a fome e a liberdade
A ter que bajular e andar acorrentado."
Mestre Lobo, com grande agilidade,
Estica a perna em correria infinda.
E todos falam que ele corre ainda.

Jean de la Fontaine




22 maio 2013

O Ermitão


Durante o reinado do rei Mabdar viveu na Babilônia um jovem chamado Zadig. Era formoso, rico e naturalmente de bom coração. No momento em que esta história começa ele estava viajando a pé para ver o mundo e aprender filosofia e sabedoria.

Mas até esse momento tinha encontrado tanta miséria e suportado tantos e terríveis desastres que estava tentado a rebelar-se contra a vontade do céu e acreditar que a Providência, que rege o mundo, desdenhava o Bem e permitia que o Mal prosperasse. Neste triste estado de espírito estava ele caminhando um dia às margens do Eufrates. Por casualidade encontrou um venerável ermitão cuja barba, branca como a neve, descia até a cintura. Em sua mão o ancião levava um rolo de pergaminho que lia com atenção. Zadig parou e fez-lhe uma reverência. O ermitão devolveu-lhe a saudação com um ar tão bondoso e tão nobre que Zadig sentiu curiosidade de falar com ele. Perguntou-lhe então o que ele estava lendo:

- É o Livro do Destino - disse o ermitão. - Você gostaria de ler este livro?

Entregou o livro a Zadig, mas este, apesar de conhecer uma dezena de línguas, não pode entender uma só palavra do livro.
Sua curiosidade foi aumentando.

- Você parece ter problemas... - disse o bondoso ermitão.

- Sim, infelizmente tenho - disse Zadig. - E tenho razões para estar assim.

- Se me permite - disse o ancião, - eu o acompanharei. Quem sabe poderei ser-lhe útil. `As vezes sou capaz de consolar os aflitos.

Zadig sentiu um profundo respeito pela aparência, a barba branca e o pergaminho misterioso do velho ermitão, e percebeu que a conversa dele era a de uma mente superior. O velho falou do destino, da justiça, da moral, do principal bem na vida, da debilidade humana, da virtude e do vício, com tal poder de eloquência que Zadig se sentiu atraído por uma espécie de encanto, e suplicou ao eremita que não o deixasse até que regressassem à Babilônia.

- Peço-lhe o mesmo favor - disse o ermitão. - Prometa-me que, haja o que houver, você permanecerá em minha companhia por alguns dias.

Zadig prometeu, e juntos se puseram em marcha.

Naquela noite os viajantes chegaram a uma grande mansão. O eremita pediu comida e alojamento para ele e seu companheiro. O porteiro, que poderia ser confundido com um príncipe, os introduziu com um desdenhoso ar de boas-vindas. O chefe dos serventes lhe mostrou os magníficos aposentos, e então lhes foi permitido sentar-se em um canto da mesa, na qual estava o senhor da mansão, que nem se deu ao trabalho de olhá-los. Mesmo assim, iguarias em abundância lhes foram servidas, e depois de cear lavaram as mãos em uma bacia de ouro incrustrada com esmeraldas e rubis. Foram então levados para passar a noite em um formoso aposento. Na manhã seguinte, antes de deixarem o castelo, um servente trouxe uma peça de ouro para cada um.

- O senhor da casa - disse Zadig quando estavam caminhando - parece ser um homem generoso, ainda que um pouco arrogante, e pratica uma nobre hospitalidade.

Enquanto falava com ele se deu conta de que uma espécie de bolsa grande que o eremita levava parecia agora abarrotada. Dentro dela estava a bacia de ouro incrustrada de pedras preciosas que o velho havia furtado. Zadig ficou pasmo, mas não disse nada.

Ao meio-dia o eremita parou em frente a uma pequena casa onde vivia um rico avarento e, mais uma vez pediu hospedagem. Um velho criado, usando um puído casaco, os recebeu muito grosseiramente, acomodou-os no estábulo e pôs diante deles umas poucas azeitonas meio estragadas, uns pedaços de pão dormido e cerveja muito amarga. 
O ermitão comeu e bebeu com o mesmo prazer que tivera na noite anterior. Quando terminaram o ermitão se dirigiu ao criado, que não havia tirado os olhos deles para assegurar-se de que nada roubariam, deu-lhe as duas peças de ouro que haviam recebido naquela manhã e agradeceu a sua atenção, acrescentando:

- Tenha a bondade de permitir que eu veja seu amo.

O atônito servo os conduziu para dentro da casa.

- Poderosíssimo senhor - disse o ermitão, - eu gostaria de apresentar meus humildes agradecimentos pela nobre maneira com que nos recebeu. Eu suplico que aceite esta bacia de ouro como demonstração de minha gratidão.

O miserável avarento quase caiu da cadeira, de tão assombrado que ficou. O ermitão, sem esperar que ele se recobrasse, retirou-se rapidamente com seu companheiro.

- Santo Pai - disse Zadig, - o que significa tudo isso? Para mim você não se parece em nada aos outros homens. Você rouba uma bacia de ouro com jóias de um senhor que nos recebe magnificamente e a dá a um tacanho que o trata indignamente.

- Meu filho - replicou o ermitão, - esse poderoso senhor que só recebe os viajantes por vaidade e para ostentar suas riquezas de agora em diante se fará mais sábio, e, por outro lado, o miserável será ensinado a praticar a hospitalidade. Não se espante com nada, e siga-me.

Zadig não sabia se estava tratando com o mais sábio ou com o mais tolo dos homens. Mas o ermitão falou com tal convicção que Zadig, preso a sua promessa, não teve outra escolha senão seguí-lo.

Nessa noite chegaram a uma casa agradável, de aspecto simples, que não mostrava sinais de fartura nem de avareza. O dono era um filósofo que havia abandonado o mundo e estudava, pacificamente, as leis da virtude e da sabedoria. Era um homem feliz e contente. Ele havia criado esse calmo refúgio para seu prazer e nele recebeu os estrangeiros com uma generosidade que não mostrava sinais de ostentação. Ele mesmo os conduziu a um quarto confortável, onde os fez descansar alguns instantes, e então veio buscá-los para servir-lhes uma delicada ceia.

Nas conversas que mantiveram entre si, concordaram que os assuntos deste mundo nem sempre eram regulados pelas opiniões dos homens mais sábios. O ermitão, por sua parte, sustentava que os caminhos da Providência estavam envoltos em mistério e que os homens faziam mal em emitir julgamento sobre um universo do qual só conheciam uma parte muito pequena. Zadig se perguntava como uma pessoa que cometia atos tão loucos podia pensar tão corretamente.

Finalmente, depois de uma conversa tão agradável quanto instrutiva, o anfitrião conduziu os viajantes a seus quartos e agradeceu ao céu por enviar dois visitantes tão sábios e virtuosos.
Ofereceu-lhes algum dinheiro, mas o fez com tanta franqueza que eles não puderam se sentir ofendidos. O velho recusou e se despediu, pois desejava partir para a Babilônia ao nascer do dia. Separaram-se em tom cordial, e Zadig estava cheio de agradáveis sentimentos por um homem tão amistoso.

Enquanto estavam em seu quarto, Zadig e o ermitão passaram algum tempo elogiando o anfitrião. Ao amanhecer o ancião despertou seu companheiro, dizendo:

- Devemos ir. Mas enquanto todos ainda estão dormindo desejo deixar a este digno homem um sinal de minha estima.

Com estas palavras, pegou uma tocha e deitou fogo à casa.

Zadig começou a gritar horrorizado e teria impedido esse terrível ato, mas o ermitão, com uma força superior, o deteve. A casa se tornou uma fogueira, e o velho, que agora estava bem longe com seu companheiro, olhou calmamente para a pilha  fumegante.

- O céu seja louvado! - gritou. - A casa de nosso amável anfitrião está destruída de ponta a ponta!

Ao ouvir estas palavras, Zadig não sabia se chorava ou se ria; se chamava o venerável de velhaco, se o golpeava ou se corria para longe dali, mas ele não fez nenhuma destas coisas. Ainda subjugado pela aparência superior do ermitão, seguiu-o contra sua própria vontade até a hospedagem seguinte. Desta vez chegaram à residência de uma boa e caridosa viúva que tinha um sobrinho de 14 anos, sua única esperança e alegria. Ela fez tudo o que pode pelos viajantes. 
Na manhã seguinte pediu a seu sobrinho que os guiasse na travessia de uma certa ponte em ruínas, perigosa de se cruzar. O jovem os conduziu, ansioso por agradá-los.

- Venha - disse o eremita, quando eles estavam no meio da ponte, 
- devo mostrar minha gratidão para com sua tia.

Enquanto falava, ele pegou o jovem pelos cabelos e o atirou no rio. 
O jovem caiu, reapareceu por um instante na superfície da água e logo foi tragado pele corrente.

- Oh, monstro! - exclamou Zadig. - Você é o mais detestável dos homens!

- Você me prometeu ter mais paciência - interrompeu o velho. - Escute!
Embaixo das ruínas daquela casa que a Providência achou conveniente por em chamas, o dono descobrirá um enorme tesouro; enquanto o jovem, cuja existência a Providência cortou, teria matado a tia em um ano e a você em dois anos.

- Quem lhe disse isto, bárbaro? - gritou Zadig. - Ainda que você tenha lido isso no Livro do Destino, quem lhe deu poder para afogar um jovem que nunca lhe fez nada?

Enquanto falava, Zadig viu que o ancião já não tinha mais barba e que seu rosto tinha se tornado jovem e belo. Seu traje de eremita havia desaparecido, quatro asas brancas cobriam a sua majestosa forma e brilhavam com ofuscante esplendor.

- Anjo do Céu! - gritou Zadig. - Você então desceu do céu para ensinar a um mortal extraviado a submeter-se às leis eternas?

- Os homens - replicou o anjo Jezrael - julgam todas as coisas sem conhecimento, e você é, de todos os homens, o mais merecedor de ser esclarecido. O mundo imagina que o jovem que acaba de perecer caiu por acidente na água e que a casa do filósofo se incendiou por acaso. 
Mas a causalidade não existe: tudo é prova, castigo ou profecia. 
Frágil mortal! Pare de questionar e de se rebelar contra o que você deveria adorar!

Depois de dizer estas palavras, o anjo alçou vôo até o céu e Zadig se prostrou ajoelhado.


Extraído de
'Histórias da Tradição Sufi'
Edições Dervish 1993

08 janeiro 2013

A Mudança do amigo

Um amigo de Nasrudin disse um dia, "eu estou mudando para outra vila. Você pode me dar seu anel? Desta forma eu sempre lembrarei de você todas as vezes que olhar para ele!"
"Bem," respondeu Nasrudin, "você pode perder o anel e esquecer-me. Então em primeiro lugar eu não vou dar o anel a você, desta forma todas as vezes que você olhar para o seu dedo  e não ver o anel, você definitivamente se lembrará de mim!"

Extraido do livro 200+ Mulla Nasrudin Stories and Jokes
traduzido por Mandelas Zurc

30 outubro 2010

O Kashkul

Conta-se que um dia um dervixe deteve um rei em plena rua.

- Como te atreves – disse o rei, - tu, um homem insignificante, a interromper os passos de teu soberano?

- E tu - replicou o dervixe, - como podes ser um soberano se nem ao menos consegue encher meu ‘kashkul’, a tigela que uso para mendigar?

Ele ergueu o ‘kashkul’ e o rei ordenou que o enchessem de ouro. Mas à medida que o enchiam de moedas elas desapareciam, e o ‘kashkul’ parecia estar sempre vazio. Trouxeram-lhe fardos de ouro, e a surpreendente tigela os devorava.

- Parem! – gritou o rei. – Este ilusionista está esvaziando meu tesouro.

- Tu achas que estou esvaziando teu tesouro – observou o dervixe, - mas outros acham que estou simplesmente demonstrando uma verdade.

- Que verdade? – perguntou o rei.

- A verdade de que ‘kashkul’ representa os desejos do homem, e o ouro o que se dá ao homem. A capacidade do homem para devorar não tem fim se ele não se transformar. Olha, o ‘kashkul’ comeu quase toda a tua riqueza, mas continua sendo uma casa de coco cortada, não se alterou em nada pela natureza do ouro. Se desejas, entra no ‘kashkul’ – continuou o dervixe. – Ele te devorará também. Como, diante disso, pode um rei pensar que é importante?

Extraído do livro: ”Historias da Tradição Sufi

20 agosto 2010

As Longas Colheres

Uma vez, num reino não muito distante daqui, havia um rei que era famoso tanto por sua majestade como por sua fantasia meio excêntrico.

Um dia ele mandou anunciar por toda parte que daria a maior e mais bela festa de seu reino. Toda a corte e todos os amigos do rei foram convidados.

Os convidados, vestidos nos mais ricos trajes, chegaram ao palácio, que resplandecia com todas as suas luzes.

As apresentações transcorreram segundo o protocolo, e os espetáculos começaram: dançarinos de todos os países se sucediam a estranhos jogos e aos divertimentos mais refinados.

Tudo, até o mínimo detalhe, era só esplendor. E todos os convidados admiravam fascinados e proclamavam a magnificência do rei.

Entretanto, apesar da primorosa organização da festa, os convidados começaram a perceber que a arte da mesa não estava representada em parte alguma.

Não se podia encontrar nada para acalmar a fome que todos sentiam mais durante à medida que as horas passam.

Essa falta logo se tornou incontrolável.

Jamais naquele palácio nem em todo o país aquilo havia acontecido.

A festa não parava de esforçar-se para atingir o auge, oferecendo ao público uma profusão de músicos maravilhosos e excelentes dançarinos.

Pouco a pouco o mal-estar dos espectadores se transformou numa surda mas visível contrariedade.

Ninguém no entanto ousava elevar a voz diante de um rei tao notável.

Os cantos continuaram por horas e horas. Depois foram distribuídos presentes, mas nenhum deles era comestível.

Finalmente, quando a situação se tornou insustentável, e a fome intolerável, o rei convidou seus hóspedes a passarem para uma sala especial, onde uma refeição os aguardava.

Ninguém se fez esperar. Todos, como um conjunto harmonioso, correram em direção ao delicioso aroma de uma sopa que estava num enorme caldeirão no centro da mesa.

Os convidados quiseram servir-se, mas grande foi sua surpresa ao descobrirem, no caldeirão, enormes colheres de metal, com mais de um metro de comprimento. E nenhum prato, nenhuma tigela, nenhuma colher de formato mais acessível.

Houve tentativas, mas só provocaram gritos de dor e decepção. Os cabos desmesurados não permitiam que o braço levantasse à boca a beberagem suculenta, porque não se podiam segurar as escaldantes colheres e não ser por uma pequena haste de madeira em suas extremidades.

Desesperados, todos tentavam comer, sem resultado. Até que um dos convidados, mais esperto ou mais esfaimado, encontrou a solução: sempre segurando a colher pela haste situada em sua extremidade, levou-a à... boca de seu vizinho, que pôde comer à vontade.

Todos o imitaram e se saciaram, compreendendo enfim que a única forma de alimentar-se, naquele palácio magnífico, era um servindo ao outro.