18 março 2013

Um elefante no escuro


Um elefante pertencente a uma mostra ambulante fora colocado num estábulo perto de uma cidade que até então nunca tinha visto um elefante. Tendo ouvido falar da maravilha escondida, quatro cidadãos curiosos foram tentar vê-la antes dos outros. Chegados ao estábulo, verificaram que não havia luz. A investigação, portanto, teve de ser feita no escuro.
Um deles, tocando-lhe a tromba, supôs a criatura parecida com uma mangueira de água; o segundo apalpou-lhe a orelha e concluiu que era um leque. O terceiro, pegando uma perna, comparou-a a um pilar vivo; e o quarto, tendo posto a mão no dorso do animal, convenceu-se de que era uma espécie de trono. Nenhum deles pôde formar uma imagem completa; e, partindo da parte com que cada um entrara em contato, só puderam referir-se ao animal em termos de coisas que já conheciam. O resultado da expedição foi uma confusão. Cada qual tinha a certeza de ter razão; e nenhum dos outros habitantes da cidade compreendeu o que acontecera, nem o que os investigadores haviam de fato, experimentado.
Extraído do livro "Os Sufis" de Idries Shah

08 janeiro 2013

Bravo com o Faquir

Um Faquir clamava que poderia ensinar qualquer analfabeto a ler através de uma "técnica instantânea."

"Ok," disse Nasrudin. "Ensine-me."

O Faquir tocou a cabeça de Nasrudin e disse, "Agora leia alguma coisa."

Nasrudin saiu, e retornou a praça da aldeia uma hora depois com um olhar raivoso em sua face.

" O que aconteceu?" Perguntaram os aldeões. "Você pode ler?"

"Na verdade eu posso," respondeu Nasrudin, "mas não foi por isso que eu voltei? Agora onde está o salafrário do Faquir?"

"Mulla," disseram as pessoas, "ele ensinou você a ler em não mais do que um minuto. Então o que faz você pensar que o Faquir é um salafrário?"

"Bem," Nasrudin explicou, "eu estava justamente lendo um livro que afirmava, 'Todos os Faquires são fraudes.' "

Extraido do livro 200+ Mulla Nasrudin Stories and Jokes
Traduzido por Mandelas Zurc

A Mudança do amigo

Um amigo de Nasrudin disse um dia, "eu estou mudando para outra vila. Você pode me dar seu anel? Desta forma eu sempre lembrarei de você todas as vezes que olhar para ele!"
"Bem," respondeu Nasrudin, "você pode perder o anel e esquecer-me. Então em primeiro lugar eu não vou dar o anel a você, desta forma todas as vezes que você olhar para o seu dedo  e não ver o anel, você definitivamente se lembrará de mim!"

Extraido do livro 200+ Mulla Nasrudin Stories and Jokes
traduzido por Mandelas Zurc

19 julho 2011

O aprendiz de alfaiate que tinha imaginação demais

Era uma vez um jovem órfão, aprendiz de alfaiate, chamado Daud, que vivia no Cairo. Enquanto costurava, sentado com as pernas cruzadas, na loja de seu patrão, Daud sonhava acordado. Em sua imaginação ele era sempre um príncipe ou um nobre, vestido com as mais finas roupas.

Um dia um servo trouxe uma esplendida capa à loja do alfaiate. Pertencia a um rico mercador e tinha que ser cortada em algumas polegadas.

- Apronte-a para amanhã – disse o servo. – Voltarei para buscá-la antes do meio-dia.

- Estará pronta e acabada, ainda que minha loja tenha que permanecer aberta a noite toda – prometeu o alfaiate.

Pôs-se a trabalhar, e já havia quase terminado quando chegou a noite.

- Se não voltar para comer em minha casa, minha esposa me perturbará tanto que não acabarei nunca de escutá-la.

Assim, ele entregou a capa a Daud e disse-lhe que continuasse cosendo o forro até que ele voltasse.

Logo que seu patrão partiu, Daud trabalhou cuidadosamente e logo terminou o acabamento. A capa do mercador era de uma linda lã marrom, e Daud colocou-a ao redor dos ombros para assegurar-se de que o caimento estava bom. Ela lhe caía perfeitamente. Recuou um pouco para ver-se no espelho e pensou que tinha todo o aspecto de um cavalheiro. Colocou um par de botas de couro marroquino vermelho, que pertenciam ao alfaiate, amarrou um lenço branco ao redor de sua cabeça e sentiu que podia passar perfeitamente por um nobre.

“Poderia sair pelo mundo e fazer fortuna”, disse para si mesmo. “Ninguém saberia que eu sou Daud, o aprendiz de alfaiate”.

Remexendo embaixo do balcão, onde dormia quando a loja estava fechada, pegou todos os seus pertences e os colocou em uma pequena bolsa dentro do seu cinturão.

Foi para rua e entrou em um café, onde pediu comida.

Era muito tarde e o lugar estava cheio de gente. Após alguns minutos, um jovem rapaz, da sua idade, sentou-se à sua mesa.

Logo começaram a conversar, e rapidamente o recém-chegado começou a contar a Daud sobre a sua vida.

- Pela primeira vez em minha vida estou visitando esta cidade – disse o jovem. – Fui criado por meus tios no campo.

Quando nasci meu pai teve um sonho que o perturbou muito.

Nesse sonho apareceu um anjo dizendo que eu morreria, a não ser que fosse enviado para longe, para um lugar seguro.

Naquele tempo meus pais viviam em Alexandria, e a doença e a fome atacavam a cidade. Assim foi que me mandaram à casa da irmã de minha mãe, que tinha então um menino de minha idade. Minha mãe morreu e meu pai se mudou para o Cairo, porem não lhe foi possível comunicar-se comigo até este mês, em que completo meu décimo oitavo aniversário.

- Que história curiosa, amigo! – disse Daud, intrigado.

- Qual é o seu nome e como encontrará seu pai, agora que está aqui?

- Meu nome é Jabir – disse o outro. – Vim para encontrar meu pai neste mesmo café e ele deve chegar agora. Vê este punhal? Devo tê-lo em minha mão para que ele me reconheça e devo dizer em resposta à sua saudação: “Sou aquele a quem  Allah preservou!”. E ele responderá: “Louvado seja o Senhor do Mundo”.

Ele entregou a Daud um formosíssimo punhal, feito com o melhor aço de Damasco, com uma bainha decorada com turquesas.

Enquanto segurava o punhal em suas mãos, Daud imaginou-se como o filho que voltava para seu pai e se escutou repetindo a frase que o outro acabara de dizer.

Jabir desculpou-se por ter que sair por alguns minutos, pois devia ocupar-se de seu cavalo, deixando Daud com o punhal.

Logo que saiu um homem velho, alto e de aparência nobre veio até Daud e saudou-o.

- A paz esteja contigo! – disse-lhe.

- Sou aquele quem Allah preservou – disse Daud, como num sonho.

- Louvado seja o Senhor dos Mundos! – exclamou o velho homem.

E abraçou Daud afetuosamente.

- Meu querido filho! Depois de tantos anos! Eu te reconheceria em qualquer lugar!

Daud ia dizer algo, porém o homem o fez calar-se.

- Vem comigo – disse o velho homem. – Teu caminho e o meu serão o mesmo de agora em diante, e te contarei que planos tenho para ti.

Jabir não havia voltado ainda quando Daud, tentado pela oportunidade, foi-se com o ancião para uma enorme casa nos arredores do Cairo. Ali os quartos eram luxuosos e belíssimos, e Daud sentiu que seua sonhos finalmente tinham se tornado realidade. Pensava no ancião como seu pai e tinha esquecido completamente do desafortunado Jabir, cujo lugar havia tomado.

O aprendiz sonhador, imaginado que era o herdeiro legítimo do velho senhor, estava sentado no sofá olhando à sua volta enquanto traziam a ceia.

Um velho servo, chamado Hamid, estava servindo a água.

Hamid não podia acreditar que este era o filho de seu amo, estava certo de algo não estava bem. Sussurrou no ouvido do velho:

- Estás certo de que é teu verdadeiro filho?

O amo respondeu:

- Certamente. De que outra forma poderia ter conseguido o punhal e saber a frase que deveria dizer?

Repentinamente bateram muito forte na porta, e em poucos minutos entrou Jabir gritando:

- Aí está o bandido que roubou os meus direitos de nascimento!

- Não, não – disse Daud. – Pai, acredita-me, nunca vi esse homem em minha vida.

- Quem é quem? – exclamou o velho. – Não posso saber quem está dizendo a verdade.

Sem que os demais se dessem conta, o servo Hamid escorregou por detrás de seu amo e rasgou seu manto com uma navalha.

O aprendiz de alfaiate, ao ver o rasgão, tirou linha e agulha de seu pequeno bolso e tentou cosê-lo.

Então Hamid apontou para Daud dizendo:

- Olhem, este deve ser o aprendiz de alfaiate que tinha fugido! A polícia está a sua procura a noite toda! Há menos de uma hora vieram aqui. Estão fazendo averiguações em cada casa.

Daud correu até a porta, porem Hamid foi mais rápido que ele. Derrubou o desgraçado aprendiz e prendeu suas mãos com um pedaço de corda.

- Jabir, meu filho – disse o velho senhor. – Então era você e não ele!

E abraçou finalmente seu verdadeiro filho.

- Perdôo-te – disse a Daud. – Vá embora.

O pobre aprendiz foi levado de volta à loja do alfaiate, onde devolveu a capa que havia roubado. A policia queria prender Daud, porém, diante das súplicas de seu patrão, deixaram-no livre.

- Este meu ridículo aprendiz – disse o alfaiate – tem uma imaginação demasiado vivaz e posso entender muito bem que tenha sido tentado a levar a capa e personificar um nobre.

Visto que é órfão, eu o perdoarei e voltarei a empregá-lo, pois não tem mão ruim para coser.

Foi assim que Daud aprendeu sua lição e tentou corrigir-se.

Com o tempo, viveu até esquecer história de sua fuga e se converteu em um bom alfaiate, como seu patrão. Herdou a loja e nunca mais deixou que sua imaginação o dominasse.

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Extraído do livro: Historias da Tradição Sufi

O velho que nunca amou

Contam que o elevado e santo Bajezid Bistami encontrava-se falando a uma grande e atenta platéia. Todos os presentes, velhos ou jovens, estavam fascinados com suas palavras. No auge deste encantamento, quando seu discurso enlevava a todos, entrou um fumador de ópio, e com a fala algo arrastada disse:

- Mestre, meu burro se perdeu. Ajuda-me a encontrá-lo.

- Paciência, meu filho, eu vou achá-lo - disse-lhe Bajezid Bistami, continuando seu sermão.

Após algum tempo, enquanto ainda discursava, perguntou aos presentes:

- Existe alguém entre nós que nunca amou?

- Eu - disse um velho levantando-se - eu nunca amei ninguém, desde minha mais remota juventude. Nunca o fogo da paixão consumiu minha alma. Para que não turvasse minha mente, nunca deixei o amor ocupar meu coração.

O venerando Bajezid Bistami voltou-se então para o fumador de ópio que pouco antes o havia interrompido e lhe disse:

- Vê, meu filho, acabo de achar teu burro! Pega-o e leva-o daqui.

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Türkische Märchen, Eugen Diederichs Verlag, Jena, 1925

Traduzida do Alemão por Sergio C. Bello

02 maio 2011

Quem foi seu mestre?

Quando o grande místico sufi Hasan estava morrendo, alguém lhe perguntou: "Hasan, quem foi seu mestre?".

Ele respondeu: "Tive milhares deles. Se apenas enumerasse seus nomes, levaria meses, anos, e agora é tarde demais. Mas certamente lhe contarei sobre três Mestres.
"Um deles foi um ladrão. Uma vez me perdi no deserto, e quando cheguei a uma aldeia já era muito tarde, tudo estava fechado. Mas finalmente encontrei um homem, que tentava fazer um buraco na parede de uma casa. Perguntei-lhe onde poderia ficar, e ele respondeu: " A esta hora da noite será difícil, mas pode ficar comigo se for capaz de ficar com um ladrão!".
"E o homem era tão harmonioso- fiquei por um mês! E toda noite ele dizia: "Estou indo agora a meu trabalho. Vá descansar e rezar." E quando ele voltava, eu lhe perguntava: "Conseguiu algo?, e ele respondia: "Esta noite não. Mas amanhã tentarei novamente, e se Deus quiser..."Ele nunca se desesperava, e estava sempre feliz.
"Quando eu meditava e meditava por anos a fio, e nada me acontecia, muitas vezes havia momentos em que ficava tão desesperado, tão sem esperanças, que pensava em parar com toda aquela bobagem. E de repente me lembrava do ladrão que toda noite dizia: "Se Deus quiser, amanhã vai acontecer".
"E meu segundo mestre foi um cachorro. Eu me dirigia a um rio, sedento, e um cachorro apareceu, também com sede. Olhou para o rio, vendo lá outro cachorro - sua própria imagem - e ficou com medo. Ele latia e se afastava correndo, mas sua sede era tamanha que acabava voltando. Finalmente, apesar do medo, simplesmente pulou na água, e a imagem desapareceu. E eu sabia que aquela era uma mensagem de Deus para mim: devemos dar o salto, apesar de nossos receios.
"E o terceiro Mestre foi uma pequena criança. Cheguei numa cidade, e uma criança estava carregando uma vela acesa. Ela se dirigia à mesquita, para lá depositar a vela. "Apenas por brincadeira, perguntei ao menino :"Você mesmo ascendeu a vela?. Ele respondeu: "Sim, senhor". E continuei: " Houve um momento em que a vela esteve apagada, depois houve outro em que ela se ascendeu. Você pode me mostrar a fonte da qual a luz veio?".
"E o menino riu, assoprou a vela, e disse: Agora você viu a luz se indo. Para onde ela foi? Diga-me!
"Meu ego e todo o meu conhecimento ficaram despedaçados. E naquele momento senti minha própria estupidez. Desde então abandonei toda a minha erudição".

19 dezembro 2010

O Sultão que se transformou num exilado

Conta-se que um sultão egípcio convocou certa vez uma reunião de conselheiros eruditos, e logo, como costuma acontecer, iniciou-se uma discussão. O tema era a Travessia Noturna do Profeta Maomé.

Diz-se que naquela ocasião o Profeta foi removido de seu leito para as esferas celestiais. Durante esse período pode ver o paraíso e o inferno, conferenciou com Deus noventa mil vezes, viveu muitas outras experiências, sendo trazido de volta a seu quarto quando a cama ainda estava morna. Uma moringa cheia d'água que fora derrubada e derramada por ocasião do vôo celestial ainda não se esvaziara quando o Profeta retornou.

Alguns sustentavam ser isso possível graças a uma maneira diferente de calcular o tempo. O sultão afirmava ser algo impossível.

Os sábios disseram então que tudo era possível para o poder divino.

Mas essa declaração não satisfez o rei.

As notícias sobre tal debate chegaram finalmente ao conhecimento do xeque sufi Shahabudin, que se apresentou imediatamente ante a corte.

O sultão demonstrou a devida humildade para com o mestre, que disse:

- Proponho proceder sem mais demora a minha demonstração, pois saibam que as duas interpretações do problema são incorretas, e que há elementos de verificação segura que podem explicar as tradições, sem necessidade de recorrer a especulações rotineiras ou a uma "logicidade" insípida e mal informada.

Havia quatro janelas no salão de audiências. O sufi abriu uma delas, por onde então o sultão olhou para fora. Numa montanha ao longe ele viu um exército invasor, cujas fileiras pareciam intermináveis, marchando rumo ao castelo. Ficou terrivelmente assustado.

- Peço-lhe que esqueça o que viu, pois não é nada - disse o sufi.

Assim dizendo, fechou a janela e voltou a abrí-la. Dessa vez não se via ninguém lá fora.

Mas quando abriu outra das janelas, a cidade estava sendo devorada pelas chamas. E o sultão gritou alarmado.

- Não há razão para alarma, sultão, pois não é nada - disse o sufi. Quando voltou a fechar e abrir em seguida a janela, não havia nenhum sinal de incêndio.

Ao ser aberta, a terceira janela deixou à vista uma torrente que já ameaçava inundar o palácio.

E, de novo, repetiu-se o fenômeno: a inundação não existia.

Quando a quarta janela foi aberta, em lugar do usual deserto, via-se agora um jardim paradisíaco. Mas ao ser novamente fechada e reaberta a janela o belo cenário desaparecera.

Então o xeque sufi ordenou que trouxessem uma vasilha com água, e pediu ao sultão que mergulhasse sua cabeça nela por um momento. Tão logo fez o que lhe era solicitado, o sultão encontrou-se sozinho numa praia deserta, um lugar que desconhecia inteiramente.

Sentiu-se enfurecido de repente com aquele feitiço mágico do aleivoso xeque e jurou vingar-se dele.

Logo ele encontrou uns lenhadores que lhe indagaram quem era. Impossibilitado de revelar sua verdadeira condição, lhes disse que era um náufrago. Então eles lhe deram algumas roupas, e se dirigiu a um povoado. Um ferreiro, vendo-o vagar ao acaso, perguntou-lhe quem era.

- Um mercador náufrago, agora sem recursos, dependendo da caridade de lenhadores - respondeu o sultão.

O ferreiro lhe contou então algo sobre um certo costume daquele lugar. Todos os forasteiros poderiam pedir em casamento a primeira mulher que saísse da casa de banhos, e ela teria que aceitar o pedido. Foi ao local indicado e viu sair dali uma bela moça. Perguntou-lhe se já era casada, e tendo obtido resposta afirmativa, perguntou à outra mulher, que era feia, e logo à seguinte. A quarta era realmente bela. Ela disse que era solteira, mas o recusou, desagradada por seu aspecto comum e sua roupa gasta.

Um pouco depois, um homem plantou-se diante dele, dizendo:

- Fui enviado aqui em busca de um homem andrajoso. Por favor, acompanhe-me.

O sultão acompanhou o servo e foi por este levado a uma casa magnífica, ficando a repousar durante horas num confortável e amplo quarto. Horas depois, quatro mulheres formosas e vestidas com elegância incomum entraram no aposento precedendo a uma quinta jovem de surpreendente beleza. Nela o sultão reconheceu a última mulher a quem fizera a proposta de casamento na saída da casa de banhos.

Ela lhe deu as boas-vindas e explicou que sua pressa em retornar à casa fora devida aos preparativos para a chegada do estranho. Esclareceu também que se comportara com arrogância horas antes por ser tal atitude um costume usual naquele país, praticado por todas as mulheres na rua.

Foi servida então uma refeição excelente. Maravilhosas roupagens foram trazidas e presenteadas ao sultão, enquanto uma música de acordes suaves era executada.

O sultão viveu sete anos com sua nova esposa, até dilapidarem todo o patrimônio pertencente a ela. Então a mulher lhe disse que agora ele devia sustentar a ela e a seus sete filhos.

Lembrando-se de seu primeiro amigo na cidade, o sultão voltou a procurar o ferreiro a fim de lhe pedir um conselho. Já que o sultão não tinha nenhum negócio ou ofício, o ferreiro lhe sugeriu ir ao mercado e oferecer seus serviços como entregador de encomendas.

Transportando pacotes pesadíssimos, após um dia de trabalho, o sultão só obteve uma décima parte do dinheiro necessário para a alimentação de sua família.

No dia seguinte, o sultão dirigiu-se novamente para a praia, onde encontrou o lugar exato do qual emergira havia sete anos. Disposto a rezar suas orações, começou a lavar-se na água. Foi quando, de modo súbito e patético, se achou de novo em seu palácio, com a vasilha de água, o xeque sufi e seus vassalos.

- Passei sete longos anos de desterro, homem perverso!- bradou o sultão.

Sete anos, uma família numerosa e tendo que trabalhar como carregador! Não teme a Deus, o Todo-Poderoso, por essa ação?

- Mas faz apenas um instante que o senhor mergulhou sua cabeça na água desta vasilha - retrucou o mestre sufi.

Todos os cortesãos confirmaram tal declaração.

O sultão não se deu por convencido, começando a dar ordens para a decapitação do xeque. Este, percebendo de saída o que ia ocorrer, graças a seu sexto sentido, pôs em prática o dom denominado Ilm el-Ghaibat, isto é, A Ciência da Ausência. Deslocou-se assim corporalmente e de maneira instantânea para Damasco, a muitos dias de distância dali.

Foi de lá que escreveu uma carta ao rei:

"Sete anos passaram para vós, como já tereis percebido, enquanto permanecestes por um instante com a cabeça dentro d'água. Isto ocorre graças ao emprego de certas faculdades, e não possui nenhum significado especial exceto como ilustração do que pode vir a acontecer. Por acaso, segundo a tradição do feito de Maomé, o leito do Profeta não permaneceu morno, e a jarra com água?"

"O detalhe importante não consiste em que alguma coisa tenha acontecido ou não. Tudo é possível de acontecer.

O importante, na verdade, é o significado do acontecimento. Em vosso caso, não houve nenhum. Mas no do Profeta houve ricas significações."

Costuma ser dito que cada trecho do Alcorão possui sete significados, cada um aplicado ao estado de espírito do leitor ou do ouvinte.
Esta narrativa, como muitas outras do estilo sufi, enfatiza a frase de Maomé:

"Fale com cada pessoa de acordo com o grau de seu entendimento."

Ibrahim Khawwas assim define o método sufi: "Demonstre o desconhecido com palavras que os ouvintes chamam de 'conhecidas'."

Esta versão foi extraída do manuscrito intitulado Hu-Nama (Livro de Hu), da coleção de Nawab de Sardhana, datado de 1596.


 


 

Extraído de

'Histórias dos Dervixes'

Idries Shah

Nova Fronteira 1976