14 abril 2015

O Rei que resolveu ser generoso

Certa vez, um rei do Irã ordenou a um dervixe: “Conte-me uma história.”O dervixe disse: “Majestade, eu lhe contarei a história de Hatim Tai, o rei árabe e o homem mais generoso de todos os tempos, pois, se pudesse ser como ele, seria, realmente, o maior rei vivo. 
“Prossiga”, disse o rei. “Mas, se sua história não me agradar, tendo lançado dúvidas quanto à minha generosidade, perderá sua cabeça”. O rei falou assim porque na Pérsia era costume que todos na corte dissessem ao monarca que ele tinha qualidades mais admiráveis do que qualquer pessoa no mundo – do passado, do presente ou do futuro.
“Continuando”, disse o dervixe à maneira dos dervixes (pois eles não ficam facilmente desconcertados), “a generosidade de Hatim Tai superava, na ação e no espírito, a de todos os outros homens.” E esta é a história que o dervixe contou:
Um outro rei árabe cobiçava as posses, as aldeias, os oásis, os camelos e os guerreiros de Hatim Tai. Esse homem declarou guerra a ele, enviando um mensageiro com a seguinte declaração de guerra: “Renda-se a mim ou, do contrário, atacarei você e suas terras, e me apossarei da sua soberania.” 
Quando essa mensagem chegou à corte de Hatim Tai, seus conselheiros imediatamente lhe sugeriram que mobilizasse os guerreiros em defesa do seu reino, afirmando: “Certamente, não há um só homem ou uma só mulher fisicamente aptos, entre seus súditos, que não sacrificariam com alegria sua vida em defesa do nosso amado rei.”
Mas Hatim, contrariando as expectativas do povo, declarou: 
“Não, em vez de cavalgarem até eles e derramarem seu sangue por mim, eu fugirei. Se me tornasse a causa do sacrifício da vida de um só homem ou de uma só mulher, estaria longe do caminho da generosidade. Se vocês se renderem pacificamente, esse rei se contentará em aceitar seus serviços e tributos, e assim não sofrerão danos materiais. Se, ao contrário, resistirem, ele terá direito, segundo as convenções de guerra, de considerar suas posses como despojos, e, se perderem a guerra, ficarão sem um centavo. “ 
Assim dizendo, Hatim pegou apenas um bastão firme e rumou para as montanhas próximas, onde encontrou uma gruta e mergulhou em contemplação.
Metade da população ficou profundamente tocada com o fato de Hatim Tai sacrificar sua posição e suas riquezas em favor deles. Mas outros, especialmente aqueles que queriam se destacar como corajosos, murmuraram: “Como vamos saber se este homem não é simplesmente um covarde?” E outros, que tinham pouca coragem, criticaram Hatim, dizendo: “De certo modo, ele salvou a si mesmo, pois nos abandonou a um destino que desconhecemos. Talvez nos tornemos escravos desse rei desconhecido, que é, afinal de contas, tirano o suficiente para declarar guerra a seus vizinhos. “
Alguns outros, sem saber no que acreditar, permaneceram em silêncio, até que pudessem ter meios para formar uma opinião.
E foi assim que o rei tirano, acompanhado por seu impressionante exército, tomou posse do reino de Hatim Tai. Ele não aumentou os impostos, não tomou para si mais do que Hatim recebia do povo em troca de ser seu protetor e administrador da justiça. No entanto algo o perturbava. Tinha ouvido boatos de que, embora tivesse se apoderado de um novo reino, ele lhe havia sido cedido por um ato de generosidade de Hatim Tai. Essas eram as palavras pronunciadas por algumas pessoas do povo.
“Não poderei ser o verdadeiro senhor dessas terras”, declarou o tirano, “enquanto não capturar Hatim Tai. Enquanto viver, haverá lealdade a ele no coração de muitas dessas pessoas. Isso significa que não são meus súditos completamente, mesmo que, aparentemente, se comportem como tal.”
Assim, publicou um edital anunciando que qualquer pessoa que trouxesse Hatim Tai à corte seria recompensada com cinco mil moedas de ouro. Hatim Tai não sabia nada sobre isso, até que um dia, sentado do lado de fora de sua gruta, ouviu uma conversa entre um lenhador e sua esposa.
O lenhador disse: “Querida esposa, estou velho e você é muito mais jovem do que eu. Temos filhos pequenos e, na ordem natural dos acontecimentos, é provável que eu morra antes de você e enquanto as crianças ainda são muito jovens. Se ao menos conseguíssemos encontrar e capturar Hatim Tai, por quem o novo rei oferece cinco mil moedas de ouro, o futuro de vocês estaria garantido.
“Você deveria se envergonhar do que diz!”, respondeu a mulher. “Seria preferível você morrer e nossos filhos passarem fome a termos nossas mãos manchadas com o sangue do homem mais generoso que já existiu e que sacrificou tudo por nós.”
“O que você diz está correto”, argumentou o velho lenhador, ”mas um homem tem que pensar nos seus próprios interesses. Afinal de contas, tenho responsabilidades. E, seja como for, a cada dia, mais e mais pessoas acreditam que Hatim Tai é um covarde. Será apenas uma questão de tempo até que tenham vasculhado cada possível esconderijo à procura dele.”
“A crença na covardia de Hatim é estimulada pelo amor ao ouro. Mais conversas desse tipo, e Hatim terá vivido em vão”, replicou a mulher.
Nesse momento Hatim se levantou e se revelou ao casal atônito: “Eu sou Hatim Tai. Levem-me ao novo rei e reclamem sua recompensa.”
O velho homem ficou envergonhado e seus olhos se encheram de lágrimas. “Não, grande Hatim”, disse , “não posso fazer isso.”
Enquanto discutiam, algumas pessoas, que estiveram à procura do rei fugitivo, agruparam-se em torno deles.
“Se não o fizer”, disse Hatim,”vou me entregar ao rei e dizer que você me escondia aqui. Nesse caso, será executado por traição.
Percebendo que se tratava de Hatim, a corja avançou, prendeu seu antigo rei e o conduziu até o tirano, seguidos pelo desolado lenhador.
Quando chegaram à corte, cada um reivindicou ter capturado Hatim pessoalmente. O antigo rei, vendo o ar indeciso do seu sucessor, pediu permissão para falar: “Saiba, ó rei, que meu testemunho deve também ser ouvido. Fui capturado por este velho lenhador, e não por aquela corja ali. Dê a ele, portanto, sua recompensa e faça comigo o que desejar...”
Nesse momento, o lenhador deu um passo à frente e contou ao rei a verdade sobre Hatim Tai ter se oferecido em sacrifício pela segurança futura da sua família. 
O novo rei ficou tão impressionado com essa história que ordenou a retirada do seu exército, restituiu o trono a Hatim Tai e voltou para seu lugar de origem.
Depois de ouvir essa história, o rei do Irã, esquecendo-se da ameaça que fizera ao dervixe, disse: “Um conto excelente, ó dervixe, do qual podemos nos beneficiar. Você, de qualquer modo, não pode tirar nenhum proveito, tendo abandonado as expectativas desta vida e nada possuindo. Mas eu, eu sou um rei. E sou rico. Os reis árabes, pessoas que vivem de lagartos cozidos, não podem se equiparar a um rei persa quando se trata de generosidade verdadeira. Uma ideia me ocorreu! Ao trabalho!”
Levando o dervixe consigo, o rei do Irã convocou seus maiores arquitetos e os reuniu num grande espaço aberto, ordenando-lhes que desenhassem e construíssem ali um imenso palácio. Ele deveria ser composto de um cofre central e quarenta janelas.
Quando ficou pronto, o rei reuniu todos os meios de transporte disponíveis para abarrotar o palácio com moedas de ouro. Após muitos meses dessa atividade, uma proclamação foi expedida:
“Viva! O Rei dos Reis, Fonte da Generosidade, ordenou que um palácio com quarenta janelas fosse construído. Todos os dias, por essas janelas, ele distribuirá pessoalmente ouro para todas as pessoas necessitadas.”
Como era de se esperar, multidões de necessitados se reuniram, e o rei entregou uma moeda de ouro para cada um, aparecendo todos os dias numa janela diferente. Então, ele notou que havia um certo dervixe que, diariamente, se apresentava diante da janela, pegava sua moeda de ouro e ia embora. No início, o rei pensou: “Talvez ele queira levar o ouro para alguém necessitado.” Depois, quando viu o homem de novo, pensou: “Talvez esteja aplicando a regra dervixe da caridade secreta e redistribuindo o ouro.” E, a cada dia, quando via o dervixe, o desculpava mentalmente; até o quadragésimo dia, quando descobriu que sua paciência tinha chegado ao fim. Segurando a mão do dervixe, o rei disparou: “Verme ingrato! Você não diz obrigado nem demonstra qualquer apreço por mim. Não sorri, não se curva, e volta dia após dia. Por quanto tempo vai proceder assim? Está economizando à custa da minha generosidade para se tornar rico? Ou está emprestando o ouro a juros? Seu comportamento está realmente muito distante do comportamento daqueles que sustentam a honorável insígnia do manto de retalhos.”
Assim que estas palavras foram pronunciadas, o dervixe atirou ao chão as quarenta moedas de ouro que havia recebido e disse ao rei: “Saiba, ó rei do Irã, que a generosidade não pode existir sem que três coisas a precedam. A primeira é dar sem o sentimento de generosidade, a segunda é a paciência, e a terceira é não ter suspeitas.”
Mas o rei nunca aprendeu. Para ele, a generosidade estava atrelada ao que as pessoas pensariam dele e a como se sentia sendo “generoso”. 
Esta história tradicional, conhecida pelos leitores principalmente por meio do clássico urdu A História dos Quatro Dervixes, ilustra sucintamente importantes ensinamentos sufis.
A imitação sem as qualidades básicas que sustentem essa imitação é inútil. A generosidade não pode ser exercitada a menos que outras virtudes também sejam desenvolvidas.
Algumas pessoas não podem aprender mesmo quando expostas a ensinamentos, representados neste conto pelo primeiro e pelo segundo dervixes.

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